quinta-feira, 7 de novembro de 2013

TERRA EM TRÂNSITO


  • TERRA EM TRÂNSITO
    Love Metrô Story

    Nossa intimidade visual sucumbe nesta hora em que a sociedade entende que devemos nos vigiar, por meio de câmeras. Liberdade, eterna vigilância... Mas, a intimidade propriamente física, táctil, vai pro espaço no instante de se dividir o centímetro quadrado num vagão de metrô, por exemplo. No Rio, os vagões “rosas” tentam diminuir o constrangimento de homens e mulheres terem que unir seus corpos involuntariamente, nos outros vagões.

    Certo dia apareceu uma jovem com criança no colo, ao lado da avó, no prédio onde o deflechi trabalha (não o herói, the flash, mas o contínuo gordo que demorava pra subir as escadas e, daí, o apelido). Chegaram e disseram ao porteiro que procuravam um homem assim, assim, assim. O jovem não demorou a entender que se tratava do Deflechi, sim, não havia mais ninguém pesando cerca de cento e trinta quilos, torcedor do América e que assobia o tema de Ghost nas alturas.

    Não, não é montagem – ela explicou. Você sabe, as redes sociais são capazes de tudo... Ela passou nove meses da gravidez fuçando o lap top que a prima emprestou, entrou em vários grupos, anunciou que buscava o pai da criança, que ele era assim, assim, assim. Não encontrava. Ninguém sabia de um homem com aquela descrição. Até que, numa noite, deprimida e com vontade de comer feijão com leite condensado, ela jogou no google Earth, navegou, navegou e... Um pontinho vermelho chamou sua atenção, aumentou e pá! Era ele!

    O porteiro deu um discreto sorriso envergonhado, corou-se um pouco, ajudando a abrir a porta do elevador. Vinte minutos depois o prédio já sabia da estória, e também todos os botequins do quarteirão, não se falava noutra coisa.

    - O Deflechi...!?
    - O Deflechi.

    Assim que abriu a porta do elevador, era possível já ver o vulto vermelho e branco da camisa tentando circular entre computadores. A matriarca cutucou a filha, apontando para o traço do nariz e da testa.

    - O nariz. A testa. A testa atesta.
    - Quê, mãe?

    A cena fez a equipe de trinta e cinco funcionários parar o que estava fazendo. Chegaram mais uns dez do andar de cima, e ainda entrou um bêbado do botequim frequentado pelo Deflechi.

    - Epa! Epa! Eu conheço esta cena! Eu conheço esta cena! Pegadinha, né? Ok, muito engraçado, muito engraçado. Agora vão postar no site, podem postar. Quase me enganaram, quase...

    Deflechi observa que ninguém ri para confirmar a pegadinha, faz-se um silêncio sepulcral. Quebra-se o silêncio com um comentário de reprimenda, lá atrás, de um colega que mexe a cabeça para os lados:

    - Deflechi... tsc.tsc.tsc.

    Ela explicou tudo, e o Deflechi assumiu numa boa a paternidade. Tudo aconteceu assim muito naturalmente, ela sempre foi uma pessoa muito espontânea, e talvez ele também, pelo visto. Foi numa freada de metrô, daquelas que sempre são lembradas por alguém, que diz na hora, só pra irritar um pouco mais: freio de arrumação.

    Ela estava num lado do vagão, ele, no outro, distantes uns dois metros. A freada foi muito forte e ele foi parar no colo dela, faltou luz no momento, ela sentiu um calor, um sentimento de união muito intensa, mas o trem chacoalhou demais, tudo escuro, nem deu para ver a cara do pai. Deu pra ver ao menos a camisa do América e ouvir o assobio da música do filme Ghost, mais nada. Uma estória triste. Semanas depois, mesmo sem aparentar gravidez, já encontrava facilidades de assentos vazios. Foi quando começou a vomitar dentro do vagão, e não parava ninguém a seu lado.

    Mas, ali mesmo, em seu segundo encontro (oficialmente, o primeiro), já começaram a discutir. Ela perguntou sorrindo se ele não se lembrava daquele momento especial e determinante de suas vidas. Ele disse que não, ela franziu a testa:

    - Insensível!!


    Maurício Pássaro
    www.acolunadoservidor.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário