REMOVENDO PEDRAS
" Fiz a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores". (Cora Coralina)
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
ÁGUA SANTA II
Mauricio Pássaro
ÁGUA SANTA
Memórias de um bairro Encantado
O Morro do Dezoito
Duas ruas faziam (ainda fazem), o trânsito principal do bairro: a Paraná e a Torres de Oliveira. Por elas, os veículos entravam no bairro e dele saíam. A Torres de Oliveira costeava o atual morro do dezoito, que podia ser acessado pelas pequenas transversais.
Nessa época, quatro décadas atrás, o morro era habitação de bichos e pássaros. Ouvia-se falar em pequenas onças – era possível que por ali passeassem, havia muito espaço e quase nenhum rastro do temível bicho-homem, predador universal.
Não havendo praia no subúrbio, íamos nós, garotos, buscar o horizonte, que se disfarçava sob outras formas, não tínhamos a linha do oceano. Nossos pores-de-sóis aconteciam mais cedo, na silhueta do morro. Era o que nos obrigava a sair da cama sem muita demora, pela manhã, para aproveitar a claridade do dia. Claro, estou falando dos fins-de-semana, dias sem escola.
De tanto admirarmos a corcova do morro dourar, no verão, à tarde, foi inevitável surgir a ideia de um dia escalá-lo. A inexistência de computadores, tablets e samartfones legava-nos certa disposição de aventura e desbravamento. O morro não se encontrava num monitor: sentados numa cadeira, dentro de um quarto fechado, jamais o subiríamos.
O mais perto dele que chegamos – o sopé – nos atraía pelas jabuticabeiras carregadas, de onde voltávamos com bolsas cheias de pretinhas, mãos e roupas encardidas, semelhantes à cor da calçada em que elas caíam de maduras.
Essa era a árvore permitida do paraíso de nossa adolescência. A proibida não estava ali, tão fácil, acessível. Ela devia se encontrar lá no alto do morro, posta estrategicamente longe, para que ninguém do seu fruto pudesse provar.
Certo dia, levantamos uma expedição de três aventureiros: eu, Mário (primo do Antônio, craque do futebol de rua) e Lagartixa (magro que só). Considerando o morro uma extensão de nossos quintais domésticos, não calculamos que, inclinado, daria mais trabalho de percorrer. Subimos sem água, provisão, sem nada; subimos do jeito que íamos pra rua, jogar bola, de camiseta, bermuda e tênis.
Minha mãe, do tamanho de um mosquito, ficava no quintal de casa olhando e fazendo sinais convulsivos com as mãos, que não entendíamos direito, mas sabíamos que eram mensagens da preocupação, coisa natural. O morro já possuía um caminho aberto. Antes de chegar à sua metade, nos deparamos com uma casa de retiro católica. Até ali, os carros chegavam. Depois, era caminhar por trilhas, em meio a um ambiente bastante rural e belo.
Lá debaixo, avista-se no seu topo (parece um vulcão) uma grande rocha. Contudo, foi escalando o Dezoito que descobrimos: o topo era mais longe do que pensávamos, a pedra produzia ilusão de ótica no observador da superfície das ruas. O fim não chegava. Pensamos em desistir, já na metade.
- Viemos até aqui... Não podemos voltar agora. Disse a voz coletiva.
Ademais, ririam de nós, na volta, chegando com o fracasso nos ombros. O desafio nos instigava; o dia ainda era claro, estávamos na frente do sol, na corrida até o horizonte. O morro tinha muitas árvores sombreiras, alguns riachos de água limpa, mangueiras e outras árvores frutíferas. As mínimas condições de sobrevivência.
Inesquecível a hora em que virei para trás e avistei o bairro, suas ruas em miniatura, seus moradores-formigas, as habitações reduzidas. Sentamos nas pedras para descansar e apontar e descrever o que ia se vendo:
- Olha lá a minha casa!
- Onde? Onde?
- Ali, ao lado daquele ponto amarelo...
A visão era privilegiada, o nosso google street views, a olho nu, sem binóculos, a poderosa visão juvenil. Mais espanto estava por vir:
- A ponte Rio-Niterói! Dá pra ver a ponte!
- É mesmo, cara! Ninguém vai acreditar nisso, lá embaixo.
- Ainda não inventaram o celular com filmadora.
- É.
Hoje seria muito fácil fotografar ou filmar essas imagens da subida, da paisagem, com tantas maquinetas que cabem no bolso da camisa, quiçá na palma da mão. Tivemos que salvar tais arquivos no esforço de nossa própria memória, e depois transmitindo oralmente aos próximos, numa descrição possível.
O que hoje não seria fácil, nem mesmo possível: subir o morro do Dezoito, já tomado por quadrilhas do tráfico. Se onças ali havia, estas saíram corridas, atravessaram a linha do horizonte, e sumiram nas costas da serra, lá para os cantos de Jacarepaguá, do outro lado.
A virtude em subir aquele morro não existe mais para os garotos de hoje, que podem galgar montanhas maiores, apertando botões e clicando mouses. É mais seguro. E não tem jabuticaba pra sujar.
O virtual veio para suprir a falta que a virtude faz.
Maurício Pássaro
www.acolunadoservidor.com
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