ÁGUA SANTA- memórias de um bairro encantado
ÁGUA SANTA
Memórias de um bairro Encantado
Há bairros que encantam? Ou todos possuirão os seus encantos próprios? Tirante o artifício das classificações notadamente bairristas, um bairro sempre será encantado para quem nele vive ou, ainda mais, viveu. E como não pode haver bairros sem quem os habite, cuidamos que todos tenham o que apresentar de conto, crônica, observação, história.
O bairro da Água Santa, pra mim, ex-morador, alcançava grau ainda maior de encantamento, já que ele também respondia pelo nome de Encantado. Era um lugar engraçado, possuía mais outros nomes: bairro Dadur e Piedade. Quando comecei a frequentar outros bairros, na mocidade, as pessoas perguntavam de onde eu vinha, e a resposta era sempre grande, completa, e também um tanto confusa:
- Moro no Encantado, quer dizer, Água Santa, e também Dadur e Piedade. Conhece?
A princípio, havia chance de o interlocutor conhecer um desses nomes. De qualquer forma, Água Santa era, pra mim, Encantado. Imagino que alguém tenha um dia se encantado com a região, assim que a conheceu, pousando-lhe os olhos e consagrando o título. Há quarenta anos, lá eu chegava; ainda um local aprazível, tranquilo e pacífico, com morros onde seus moradores eram mais nada que pássaros, ruas bem arborizadas, casarões com quintais nos fundos, nenhum prédio...
Vias generosas, pouca circulação de veículos, podíamos jogar bola, extensos campeonatos, a prejuízo da dona Lídia, portuguesa, sua casa de rosto verde e branco, seu sotaque bem carregado de além-mar. A língua, nos dois sentidos, parecia dobrar enquanto distribuía xingamentos, em alta velocidade, por causa das bolas invasoras do seu espaço aéreo, indo atingir, em cheio, as roseiras do jardim – que lutavam por manter as pétalas intactas. Dona Lídia fez coleção de nossas bolas, conquistadas uma a uma:
- Ô dona Lídia, legal, por favor! Vamos parar de jogar aqui, dessa vez é sério...!
Não adiantava, surgia sempre alguém trazendo uma dente-de-leite, e perna-de-pau a bicá-la aos vizinhos, tirando-lhes um pouco do sossego natural e primoroso do bairro.
Inexistindo entre nós o computador (tímido, ia chegando o vídeo-game), tínhamos boa disposição para esfolar os pés no asfalto quente, ou cortar os dedos da mão soltando pipa com cerol (vidro moído mais cola de madeira – hoje é proibido por lei). Assim que cheguei ao bairro, empinei minhas primeiras pipas, sem conhecer que existia neste universo o artifício cortante do cerol. Recebi o meu “seja-bem-vindo-ao-mundo-das-ruas” empinando inocentemente esse esqueleto de varetas de bambu coladas com papel fino. Na ocasião, eu usava linha “pura”. No dia fatídico em que outra pipa cruzou os céus (como os antigos piratas cruzavam os mares), lançando sua linha laminada sobre a minha, inocente, cortando-a, foi que me iniciei na inexorável lei das ruas, em campo de batalha aéreo, observando com cara de tacho minha pipa avoando-se, perdida, no invisível, longe, até perder-se no infinito das vizinhanças mais distantes. Corri heroico uns cinco quarteirões, a fim de reavê-la, mas lá chegando me deparei com a realidade que se me despetalava: a pipa tinha então já outro proprietário, garoto que chegou primeiro.
- Pipa avoada não tem dono! Ouvi como resposta.
Decidi imediatamente comprar e usar cerol também, na linha, para me defender, reproduzindo sem saber o expediente da malícia, e me preparando para os anos posteriores da vida – onde não cabe transitar de linha pura. Eu ingressava, aos poucos, desta maneira, no mundo adulto e adulterado da competição, da concorrência, experimentando a crueza do símbolo em sua face ainda leve e educativa. Tão leve, que se sustentava no ar.
Alguns dedos poucamente cortados, vieses insignificantes.
Desencanto muito, muito pequeno, para comprometer o encantamento integral do bairro e com a vida.
Maurício Pássarowww.acolunadoservidor.com
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