ÁGUA
SANTA
Memórias
de um bairro Encantado
As Figuras do Bairro
O bairro, sendo um álbum, compõe-se de
figuras, de personalidades com traços fortes e cinzeladas à força do clima, da
paisagem, da essência do lugar. À beira das praias, na zona sul, é inevitável a
influência do mar, a cultura liberal dos costumes, a exteriorização através do
horizonte ultramarino. Os subúrbios, ao contrário, tendem a moldar seus
moradores à introspecção, a uma cultura mais conservadora. Pelo menos naquela
época, em que conseguíamos – ninguém hoje entende exatamente como, não havendo
Internet – simplesmente sobreviver e ser felizes.
O Alyrio era uma dessas figuras incríveis.
Cabe a mim, narrador, torná-lo crível. Tentarei. A começar pelo nome, incomum.
Não sei até onde o nome terá determinado o seu caráter. Alyrio tinha um senso
de humor ímpar, de encontrar coisas engraçadas onde parecia haver normalidade
ou seriedade – o que poderia virar um ato agressivo e perigoso. E não fazia
esforço para ocultar que achava algo especialmente digno de risadas e
gargalhadas. Ele dizia que, se fosse diretor de cinema, faria um filme de
“humor explícito – proibido para menores”. O filme seria tão engraçado, mas
tão, que sairiam da sala de cinema expectadores de maca, na ambulância, com
sangue escorrendo de suas bocas rasgadas de tanto rir.
De repente, uma palavra, um gesto, um
contexto colocado na roda de amigos, na calçada, dentro de um mercado ou no
interior de uma farmácia, não importa onde fosse, fazia o Alyrio cair por não
aguentar ficar de pé, sustentar a intervenção do hilário. Vi-o certa vez
despencar ao chão, com as mãos na barriga, sentindo dor, escorrendo-lhe no
rosto lágrimas, de tanto gargalhar. Perdeu a voz, como se alguém apertasse o
botão da diminuição do volume, apontando o controle sobre ele. Mas, Alyrio não
tinha controle sobre seus risos, não os reprimia – o que às vezes nos colocava
em situações difíceis, frente ao objeto de sua graça, que não costumava
enxergar graça nenhuma.
Quando o motivo recaía sobre algum amigo
presente, e ele incorporava as gargalhadas, se o amigo partia para lhe dar tapas,
o seu senso de humor crescia ainda mais, ao infinito, querendo invadir o mundo,
as casas, a atmosfera do planeta. Enquanto apanhava, ria; era o mais alto e
forte, suportava. O bom agressor sempre desistia da reprimenda, juntando-se a
ele no riso fácil, terminando por encontrar em si mesmo realmente o motivo da
graça, nem sempre inteligível ao restante da turma.
Acabávamos todos rindo também, não por causa
de um objeto indefinido, mas simplesmente por ver o Alyrio gargalhando com
gosto, vontade e conhecimento. Ríamos dele rindo. Conheci pouca gente nesse
mundo tão entregue ao riso espalhafatoso quanto ele.
Pobres de nós outros, que necessitávamos de
bons motivos para gargalhar; ou que não conseguíamos enxergar, como o Alyrio,
esses bons motivos, tão explícitos, tão óbvios, tão deliciosamente perigosos.
Maurício
Pássaro
www.acolunadoservidor.com
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