sexta-feira, 29 de novembro de 2013

ÁGUA SANTA III






ÁGUA SANTA

Memórias de um bairro Encantado

 

As Figuras do Bairro

 

O bairro, sendo um álbum, compõe-se de figuras, de personalidades com traços fortes e cinzeladas à força do clima, da paisagem, da essência do lugar. À beira das praias, na zona sul, é inevitável a influência do mar, a cultura liberal dos costumes, a exteriorização através do horizonte ultramarino. Os subúrbios, ao contrário, tendem a moldar seus moradores à introspecção, a uma cultura mais conservadora. Pelo menos naquela época, em que conseguíamos – ninguém hoje entende exatamente como, não havendo Internet – simplesmente sobreviver e ser felizes.

 

O Alyrio era uma dessas figuras incríveis. Cabe a mim, narrador, torná-lo crível. Tentarei. A começar pelo nome, incomum. Não sei até onde o nome terá determinado o seu caráter. Alyrio tinha um senso de humor ímpar, de encontrar coisas engraçadas onde parecia haver normalidade ou seriedade – o que poderia virar um ato agressivo e perigoso. E não fazia esforço para ocultar que achava algo especialmente digno de risadas e gargalhadas. Ele dizia que, se fosse diretor de cinema, faria um filme de “humor explícito – proibido para menores”. O filme seria tão engraçado, mas tão, que sairiam da sala de cinema expectadores de maca, na ambulância, com sangue escorrendo de suas bocas rasgadas de tanto rir.

 

De repente, uma palavra, um gesto, um contexto colocado na roda de amigos, na calçada, dentro de um mercado ou no interior de uma farmácia, não importa onde fosse, fazia o Alyrio cair por não aguentar ficar de pé, sustentar a intervenção do hilário. Vi-o certa vez despencar ao chão, com as mãos na barriga, sentindo dor, escorrendo-lhe no rosto lágrimas, de tanto gargalhar. Perdeu a voz, como se alguém apertasse o botão da diminuição do volume, apontando o controle sobre ele. Mas, Alyrio não tinha controle sobre seus risos, não os reprimia – o que às vezes nos colocava em situações difíceis, frente ao objeto de sua graça, que não costumava enxergar graça nenhuma.

 

Quando o motivo recaía sobre algum amigo presente, e ele incorporava as gargalhadas, se o amigo partia para lhe dar tapas, o seu senso de humor crescia ainda mais, ao infinito, querendo invadir o mundo, as casas, a atmosfera do planeta. Enquanto apanhava, ria; era o mais alto e forte, suportava. O bom agressor sempre desistia da reprimenda, juntando-se a ele no riso fácil, terminando por encontrar em si mesmo realmente o motivo da graça, nem sempre inteligível ao restante da turma.

 

Acabávamos todos rindo também, não por causa de um objeto indefinido, mas simplesmente por ver o Alyrio gargalhando com gosto, vontade e conhecimento. Ríamos dele rindo. Conheci pouca gente nesse mundo tão entregue ao riso espalhafatoso quanto ele.

 

Pobres de nós outros, que necessitávamos de bons motivos para gargalhar; ou que não conseguíamos enxergar, como o Alyrio, esses bons motivos, tão explícitos, tão óbvios, tão deliciosamente perigosos.

 

 

Maurício Pássaro

www.acolunadoservidor.com

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