CIDADE REPARTIDA III
Os donos da rua
Maurício Pássaro
Novembro/2013
O prefeito resolveu chamar as diversas vozes que representam o mais novo imbróglio da sua administração: o espaço. A cidade cresceu pra cima. As autoridades cantam de galo dizendo que o poder público está integrando a cidade, que sua presença é conforme o seu interesse com a coisa pública e o controle sobre ela. Não é bem isso. É que a cidade (o mundo) inchou tanto, que o poder público é obrigado a ocupar o seu espaço, levando placas que buscam dizer: “a Prefeitura está presente”.
Onde havia casas ou os velhos casarões, no Rio, levantaram-se prédios. O céu ficou menor, e o dia passa mais rápido, pois o horizonte não doura mais na linha do mar ou das montanhas; o sol se põe num parapeito de edifício, no terraço acinzentado. As ruas não se multiplicaram na mesma proporção. Há quarenta anos, ou menos, era possível uma família viver “debaixo da ponte”. Hoje é muito mais difícil. É por isso que moradores de “encostas”, em bairros nobres, como o Leblon, estão sendo "descobertos" e enquadrados, a contragosto, em leis de uso do solo. Muitos desses se parecem com aqueles que recebem de herança um grande imóvel da parte rica da família: não teriam condição alguma de pagar o IPTU mais caro do país.
O governo ficou bonzinho? Não. A cidade ficou mais apertada, e os agentes públicos são obrigados a atualizar suas agendas de intervenção sobre ela, incluindo-se, óbvio, os reajustes de valores do metro quadrado. Como fica estranho cobrar IPTU de um morador de porão de ponte, foi mais acertado retirá-lo dali, coitado, ninguém merece. Muito menos o turista, de ver essa feiura estragando a estética da cidade maravilhosa.
Aí, foram convocados vários representantes da sociedade civil que se utilizam do meio metro que restou no passeio público para os pedestres e os veículos que não poluem. Pedestres, ciclistas, skatistas, patinetistas... A reunião fora convocada para resolver o problema do espaço, especialmente o da calçada. O prefeito vinha adiando o encontro, até que um dia aconteceu o esperado: um acidente terrível, envolvendo skatista, ciclista, pedestre, adolescente de patins e fone de ouvido e, de sobra, um senhor de setenta e três anos que tentava se locomover num pula-pula (bola gigante, com alça, onde o passageiro se senta e pula). Tudo bem, era para fazer o neto rir, mas o problema é que fez o trânsito parar. Num raio de dezenas de quilômetros. Certa vez, um ciclista acertou em cheio um passageiro de ônibus que descia no ponto, na entrada da Rio-São Paulo, e o restante da cidade parou, engarrafando a Rio Branco, causando reflexos na zona sul e na zona oeste.
- Alguém aceita um copo de... refrigerante?
- Só se for, tipo assim, diet. Né, gente?
Disse o ciclista ao prefeito. Os demais concordaram. A garota dos patins, com a sobrancelha tensionada, anunciou certo tom de indignação:
- Não tem água de coco?
- Oh! Querida – riu o prefeito – não é uma gracinha...? – olhando para os demais.
- Vou ter que falar com o meu advogado.
O prefeito tossiu e mudou a conversa, ajuntando uns papéis sobre a mesa. Reunião proveitosa exige um foco. Isso, um foco. E o foco era repartir o espaço que sobrou entre a rua - propriedade dos veículos motorizados - e as calçadas tomadas por estacionamento de veículos motorizados e pontos de táxi. Considerar também o avanço do comércio formal, a invasão do informal, mesas e cadeiras, onde os adultos estão a beber, onde não podem estar os proprietários dos veículos motorizados.
Mas, a reunião desandou. O prefeito apresentara projeto de seu secretário de obras, o Jaiminho do Quiosque, vereador, que acrescentava mais cinco faixas coloridas no asfalto, além do BRS azul. Uma intuição coletiva dizia que as cores iriam dar em confusão, sem falar nos violentos protestos, que certamente se espalhariam pela cidade, de cidadãos daltônicos enfurecidos e descontrolados.
A discussão começou quando o ciclista reclamou da falta de educação dos pedestres. O pedestre retrucou polidamente avisando que não, que mal educadas (foi outro nome) eram as mães dos ciclistas. A menina dos patins anunciou que tudo estava sendo gravado pelo seu celular e que acionaria o advogado para processar todo mundo, tirando o segurança do prefeito e o ascensorista do prédio. O rapaz do skate estava lá atrás, no hall, de capacete, tentando descer pelo corrimão.
Ficou faltando, tipo assim, o senhor do pula-pula, logo ele. Havia curiosamente uma unanimidade naquela tarde de reunião. Em alguma coisa, ao menos, eram os presentes concordes: a culpa pelo acidente foi, com certeza, do vovô que pilotava, tipo assim, o pula-pula do netinho - sem habilitação e acima da velocidade permitida para o local.
Maurício Pássaro
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