sexta-feira, 29 de novembro de 2013

ÁGUA SANTA IV




ÁGUA SANTA
Memórias de um bairro Encantado

As Figuras do Bairro

Vale à pena sempre falar um pouco mais sobre o Alyrio, que era conhecido pelo seu hiperbólico senso de humor, mas também por sua visão radical sobre variadas questões da época. Dizíamos, como um mantra: “Alyrio é muito radical”. Na época, não podia compreender que ele era tão-somente um visionário informal, a seu modo. Sua visão caricatural das coisas era apenas uma estratégia. Gostava de explicar a formação do bairro assim, misturando o bizarro ao exagero:

- Isso aqui é uma pegada de dinossauro perdida na história, e agora estamos morando aqui. Mas, nem existe no mapa.

Diante das notícias que chegavam do mundo, do país, da cidade, Alyrio era capaz de tecer sua própria análise, curta e grossa, aparentemente depreciativa e estrategicamente corrosiva. Hoje, distanciado do objeto da investigação, entendo que se tratava de um realismo seu, muito particular e peculiar.

Saíamos, naquela época, do regime militar, e havia em parte da população certa corrente de otimismo. Mas, o seu espírito anarquista – mais para o punk do que para Bakunin – não queria saber de política, de militares, muito menos de eleições. Nada podia dar certo no Brasil – eis a sua tese. E isso num momento em que se alentava alguma esperança na sociedade brasileira, depois de vinte anos de regime de exceção. Tinha ideia de criar uma banda punk com o nome sugestivo de América Latrina. Alyrio era amante do rock, teve época em que flertava com o blues, mas terminou para além do heavy metal, cada vez mais “pesado”. Não usava pulseiras de couro com pregos, roupas pretas, porque não precisava – quem o conhecia enxergava isso estampado nele, feito uma aura negra, de indignação e revolta, sem chegar a exalar maldade. Torcia o nariz para o samba, lamentando profundamente o fato de que os negros que fizeram o blues aportaram ao Norte e não ao Sul, no Brasil, para não dizer que nasceu no país errado (e pra ele não chegava a ser um país...).

- Não dá certo. Isso aqui não vai dar nunca certo...

Com o que se indignava e se revoltava o amigo? Com a nossa condição de terceiro-mundo metido à besta, especialmente a classe musical. Tecia comparações injustas, entre os guitarristas-mestres do estrangeiro e os tupiniquins. Na sala de aula, a conversa de que éramos um país “em desenvolvimento” não colava pra ele. Na época, não imaginávamos que surgiria essa outra classificação de espírito eufêmico, que veio no bojo dos últimos anos: país emergente.

Tenho a impressão de que meu amigo não deixaria escapar a chance de dar seu parecer, se tal intitulação aparecesse por lá, há quatro décadas. Se o conheço bem, trataria de comparar o Brasil com algo que não cheira bem, flutua, boia, e não fica muito bem dizer aqui, em razão do nível da linguagem.

Com alguma coisa feita sem que ninguém perceba, no mar do desenvolvimentismo, e que emerja triunfante até à superfície.

Pode este mundo iludir a todos, tempo inteiro. Ninguém engana, porém, o Alyrio em tempo algum.



Maurício Pássaro
www.acolunadoservidor.com


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