sexta-feira, 25 de outubro de 2013

CELULARES VII





CELULARES VII
TÁ LIGADO?
Maurício Pássaro
Outubro2013
 
 
Ela não imaginou que, em seu coração, ficaria refém de um desconhecido. Quer dizer, de um desconhecido que a conhecia, e a fundo; sabia detalhes de sua vida, e ficava telefonando. Ele agregou justamente aqueles elementos que levam a mulher a sucumbir à força de um mistério. A dica número um do manual de Don Juan é chamar a mulher de “mistério”. No caso presente, ele fazia isso em forma velada, através de sinais, elevando o mistério à categoria do insuportável.
 
Seu timbre de barítono gripado ajudou. Perto dele, Cid Moreira tem a voz da Paulinha Toller, do Kid Abelha. Sabia se expressar bem, certamente era culto e tinha bom emprego. Um gerente regional de empresa estatal, daí pra cima (o que faz num ônibus...?). Homem observador, que sabe notar detalhes em uma mulher, nos vastos recantos de sua alma feminina. Ela já calculava a personalidade e o caráter do seu interlocutor. Precisava apenas encontrá-lo, a fim de confirmar.
 
Porém, o mais grave era o sujeito ser desconhecido. Isso, não! O segredo era o segredo. Quanto mais ele ligava, mais sua voz adentrava aos ouvidos da moça, e mais o mistério a perseguia. Já não conseguia realizar os afazeres da casa. E na rua, tentava perceber algum olhar revelador, um ato falho, por descuido, talvez o rapaz fosse tímido (o que intensifica o mistério). Quem sabe não estivesse apenas aplicando uma estratégia para conquistá-la?
 
Eram três horas da madrugada, não resistiu e ligou para a sua melhor amiga, que não estava dormindo, mas acordadíssima, divertindo-se no meio da night. Ao fundo, o vozerio do barzinho, música, gente cantando Espanhola no karaoquê, ruído de garrafas. Contou tudo o que estava acontecendo, desde o primeiro telefonema, enquanto sua amiga pacientemente lhe participava um “ran-ran...”
 
 
- Ran, ran...
 
Depois de uma hora e quarenta desabafando, ela perguntou sobre o que achava do seu caso, dos telefonemas, do número desconhecido, do vozeirão do Cid Moreira, da Paula Toller:
 
          - Adorei...
          - Gostou da minha estória, amiga?
          - O último CD do Kid Abelha tá show!
 
Respirou fundo, olhou o relógio, o celular amarelo, mudo, e insistiu na opinião da amiga. Talvez não tenha explicado direito; e o barulho das ruas... Mais uma hora explicando (ai, a conta!), para ouvir da amiga, diretamente da night.
 
- Que gracinha! Eu te amoooooo! Aquela música, como era mesma? “Fixação / Fantasmas no meu quarto /...”
 
Bateria arriada, ligação caída. Aquela cretina não retornou mais. A sacripanta. A desventurada. A cachorra. Dia seguinte, sem querer, esbarraram-se na agência bancária. Ou quase. Uma estava saindo, e a outra, chegando, no mesmo giro da porta de segurança. Uma, com cara de ressaca, não percebeu a outra. A outra, ainda ressentida, fingiu que não via.
 
          - Cretina.     
 
É claro que existe aqui uma rica simbologia que pode ser tratada. Há elementos paradigmáticos que enriqueceriam uma análise psicológica – entrada, saída, portas, segurança. Mas, não vale à pena estender o caso. Não vale.
 
 
 
Maurício Pássaro
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