REMOVENDO PEDRAS
" Fiz a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores". (Cora Coralina)
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
CELULARES IX
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CELULARES IX
Tá ligado?
Maurício Páasaro
Outubro/2013
Ela apontou para um dos seus celulares e gritou: “esse!” Depois pegou o kit-protesto made in China (onde é proibido protestar), vestiu a roupa preta e a máscara sorridente. Enviou a última mensagem aos amigos: Agor
...
a vemos em parte / Mas, então veremos face a face. Queria fazer um trocadilho com o facebook e a Legião Urbana, aproveitando para incitar as massas. Duas amigas curtiram. Um desconhecido compartilhou.
Chegou ao ponto de ônibus vestida de black bloc. Passou van carregando blocs que berravam palavras de ordem com os punhos fechados, fora da janela. Ela acenou, também mostrando o punho, e gritando um conhecido e comovente grito de guerra:
- Iu-huuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...!!!
O ônibus demorava. À medida que eram depredados e incendiados, a empresa os recolhia para o pátio da garagem, setor de recuperação. Poucos sobraram na pista. Daí a demora em aparecer um, e os pontos enchendo... Mas, era guerreira. Pagava, com certa altivez, o preço antigo da passagem – dois reais e setenta e cinco centavos, uma conquista das vozes das ruas. E mais, na roleta, implicava com o trocador:
- Só tenho nota de cinquenta. E se reclamar, vamos todos para a DP e eu vou cobrar a nota fiscal...!
Nesse dia, eram esperados milhares de manifestantes. A imprensa já estava em seus postos-chave, helicópteros fazendo reportagem, um clima de maio de 68 em pleno junho de 2013! A diferença era que, agora, aqueles que protestavam em 68 encontravam-se no poder dos governos sendo protestados.
Ela conseguiu um lugar nas primeiras poltronas. O veículo andava tão devagar, que parecia estar em marcha a ré. Passageiros davam muxoxos, que iam crescendo em número, acumulando irritação. Até que chegou a ela. A moça perdeu a paciência e abriu a bolsa, tirando de lá sua arma de combate mortal – o celular. E não era um simples celular, mas o seu celular-caveira, que usava em operações de tática de guerrilha. O aparelho, preto, tinha uma caveirinha rosa, de metal, com batom e brincos azuis. Olhou para trás, percebeu a indignação estampada no rosto dos demais passageiros. Então, levantou discretamente o aparelho, apontou um dedo para ele e piscou o olho. Os passageiros entenderam e fizeram sinal positivo com o dedo polegar. Ela iria filmar o motorista dirigindo.
Quando focalizou a câmera sobre o alvo, teve uma surpresa. O motorista falava ao celular e dirigia o coletivo com apenas uma das mãos. E ela começou a filmar bem no momento em que fazia uma curva fechada, em ladeira íngreme.
- Absurdo... Absurdo...
Dizia umas palavras como a preparar texto para as imagens. Instinto jornalístico. O motorista, percebendo a moça pelo reflexo do vidro, notando que era filmado, em vez de desligar o aparelho ou disfarçar, deu um belo sorriso amarelo-tabaco, perguntando com ironia:
- Tá gravando? Pode gravar.
- Absurdo... Absurdo...
O motorista parecia não estar dando bolas para o emprego. Devia estar contanto com outra atividade remunerada, na vida. De repente, ele puxa um pequeno fio preto, detrás da cadeira, onde pendurava o casaco, e o pluga ao celular. Aperta um botão e começa a tocar um grande sucesso de James Brown. Aumenta o volume. Freia o ônibus (na verdade, nem precisava), sobe no capô e começa a dançar no ritmo de soul:
- Get up! Get on up...!
Ela desenvolvia o texto, antecipando a edição das imagens, mais tarde, quando postasse na web:
- Ab-sur-do... Ab-sur-do...
Então, num ato de coragem, ou de simples imperícia, chegou-se ao motorista e disse:
- Fique sabendo que o senhor fará muito sucesso na Internet, viu!
Saltou do ônibus. Desistiu de ir ao centro da cidade. Tinha perdido a hora marcada com a galera, nem adiantava mais correr. Melhor seria retornar à sua base doméstica, à trincheira dos tablets e smartphones, e denunciar mais esse absurdo ao mundo. Não era pelos 2,75. Agora, a sua luta seria pela educação dos motoristas. Principalmente a musical. Além disso, o seu blog – o Mother Funker – faria um sucessão.
Pena que nada foi gravado. Aliás, o aparelho gravou, mas o filme não foi salvo. Ela se esqueceu de salvar o registro, e ele se perdeu. Desapareceu, evaporou-se, encaminhando-se para o universo das coisas deletadas.
- Absurdo... Absurdo...
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