quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CIDADE REPARTIDA




  • Cidade Repartida O mistério das vigas que sumiram
    Como todos devem saber, seis vigas desapareceram das obras da Perimetral, no Rio. As peças mediam quarenta metros de comprimento por sessenta centímetros de largura. Algo que pode ser visto do espaço, por habitantes de Órion. Significa um prejuízo, calculado por especialistas, em mais de cem mil reais. Talvez a concessionária, já responsabilizada pelo atual prefeito, diante de milhões, quiçá bilhões, em contrato com a prefeitura, tenha desprezado essa migalhinha de, vá lá, cem ou cento e vinte mil reais, e por isso bobeou na vigilância.

    Entretanto, pouco se aprofundou no assunto, que agora vai sendo esquecido, afinal já se passaram três semanas. Depois que implodirem a Perimetral, depois que aquela parte da cidade sofrer a sua esperada intervenção paisagística, ninguém mais vai querer saber de viga. Então, para não deixar no esquecimento, eu pensei em quatro hipóteses bem plausíveis, e convido ao leitor que me acompanhe e faça o seu próprio julgamento.

    HIPÓTESE 1

    As vigas foram levadas pelos cracudos da região. Como dizem alguns espíritas, as cracolândias nada mais são que a invasão do umbral sobre a superfície da Terra, uma população de mortos-vivos, almas perdidas que vieram vagar pela cidade maravilhosa, nessa época purgativa de pré-copa, pré-olimpíadas, pré-campanha eleitoral.

    Os cracudos derreteram as vigas usando isqueiros, que são muitos. Derreteram e transportaram o ferro líquido, em suas canecas de fumar crack. Enquanto autoridades achavam que elas estavam apenas se drogando e se matando, estavam na verdade transportando o material. Uma logística incrível! Aproximadamente cinco mil cracudos atravessaram a Avenida Brasil, em fileira, discretamente, sem serem notados.

    E as vigas viraram algumas centenas de armas, metralhadoras, fuzis e munição pesada, tudo forjado a martelo e bigorna, atrás da oficina mecânica O Vigarista. O dono da oficina não sabia por que nenhum freguês jamais pôs os pés ali, desde quando foi aberta. Quando botou o nome, achou que o público iria fazer o link de “vigarista” com “viga”, isto é, passar a ideia de que o seu serviço deixa o automóvel sólido como uma viga de ferro. Não funcionou. Mas, os cracudos entenderam o sinal. É uma hipótese bem contundente.

    HIPÓTESE 2

    As vigas não sumiram. Ou pelo menos, ainda não. Vou explicar. Trata-se da atuação de um ilusionista a serviço do malfeito, uma pena. Desses que fazem desaparecer aeronaves dentro de um hangar. Sumir com as vigas foi molezinha. Truque de espelhos – sacou? Porém, o mais espantoso nem é isso, mas o que está por trás!

    Surgirá, de repente, do nada, um candidato a prefeito que ninguém esperava. É tudo programado com o ilusionista e patrocinado pela empreiteira Madre Teresa Construções & Conchavos S/A. Será num domingo. Preste atenção. Um helicóptero estilizado nas cores verde e amarela sobrevoa a Perimetral e dele desce o candidato a prefeito, aquele que ninguém nunca esperava. Ele desce por uma escada de corda, ele é um sujeito muito esportista e olímpico. A multidão embaixo de binóculos nas mãos e tal, uma sensação. Então, para grande espasmo dos presentes, o candidato (ninguém o esperava) pousa sobre o nada, isso, o nada. Ele está segurando uma tocha. O fogo simboliza o esporte, as olimpíadas, e começa a andar no ar, como houvesse uma ponte invisível, ligando a rodoviária a um prédio, mais à frente. E a multidão:

    - Oooooooooohhhhhh...!!

    O candidato caminha sobre o invisível, simbolizando a caminhada do espírito pelo universo inefável e todo o drama cósmico do nada que há no tudo, compreendem? Ele para no meio do nada, ergue a tocha:

    - Oooooooooohhhhhh...!!

    E aí: tan-ran! O ilusionista surge e faz as vigas aparecerem sob os pés do candidato. A população se extasia diante daquilo. Espelhos, truque de espelhos. E:

    - Oooooooooohhhhhh...!!

    Músicos de orquestra, usando discretíssimos ternos verde-amarelos, com gravata branca e sapatos azuis, aparecem do nada, no meio da multidão e começam a tocar o Trenzinho Caipira, de Heitor Villa-Lobos. O violoncelista se complica na descida de um meio-fio, cai sobre o instrumento, fraturando uma costela e amassando uma carrocinha de pipoca, mas deu tudo certo.

    Chegam as eleições, o candidato vence. Seu primeiro ato, assim que empossado prefeito: aluga uma frota de caminhões e carrega as vigas para sua fazenda, no interior do país. O segundo ato é aumentar o IPTU da população, para pagar as dívidas de campanha. E o povo:

    - Oooooooooohhhhhh...!!

    Ninguém esperava. Ninguém.

    Maurício Pássaro
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terça-feira, 29 de outubro de 2013

CELULARES VIII



  • CELULARES VIII
    Tá ligado?
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  • Outubro/2013

     Glauber Rocha precisava apenas de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, para se expressar com os recursos da sétima arte. Não existe a água que passarinho não bebe? A ideia na cabeça do nosso gênio do cinema surgia com mais facilidade depois de ele fumar cigarro que passarinho não fuma.
    ...
    A câmera na mão, que na verdade era mantida sobre os ombros, pesada, virou uma caixinha que cabe na palma da mão. O celular-câmera é arma poderosa nas mãos do cidadão, do contribuinte, de todo aquele que precisa filmar um ilícito, um crime, um flagrante, uma coisa absurda ou extraordinária. E haja filmadora nesse mundo! Hoje, o primeiro passo, e o decisivo, nas linhas de investigação da polícia é recolher as câmeras de vídeo de prédios vizinhos. É justamente a quebra do sigilo telefônico e do bancário que anda resolvendo, decidindo inquéritos, auxiliando o juiz, no estágio avançado do julgamento.

    Diante disso, o celular fez a festa durante as manifestações, impedindo a visão monocromática da resposta oficial dos governos. Populares gravam os excessos da polícia e a polícia filma os Black Blocs. Em poucos minutos, o vídeo já está rodando pelas redes sociais, virando compartilhamento. Em 2012, durante assalto a um restaurante carioca, na Tijuca, um policial militar foi filmado carregando a bolsa onde os ladrões puseram os valores roubados. Não fosse o vídeo, gravado por celular de um anônimo, quem lembraria o fato, posto que, no momento do crime, era difícil de captar os detalhes?

    Alguém, com filmadora em riste, registrou a cena, postando-a na internet, a proveito das autoridades competentes. O PM filmado, na calçada do restaurante, precisou ser avisado que levou por engano uma bolsa, naturalmente achando que era sua. Esqueceu-se de devolver o dinheiro, em meio a tanta aflição, tiros, correria... A memória costuma falhar numa hora terrível como essa.

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    segunda-feira, 28 de outubro de 2013

    CELULARES IX


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    CELULARES IX
    Tá ligado?
     
    Maurício Páasaro
     
    Outubro/2013

     Ela apontou para um dos seus celulares e gritou: “esse!” Depois pegou o kit-protesto made in China (onde é proibido protestar), vestiu a roupa preta e a máscara sorridente. Enviou a última mensagem aos amigos: Agor...a vemos em parte / Mas, então veremos face a face. Queria fazer um trocadilho com o facebook e a Legião Urbana, aproveitando para incitar as massas. Duas amigas curtiram. Um desconhecido compartilhou.

    Chegou ao ponto de ônibus vestida de black bloc. Passou van carregando blocs que berravam palavras de ordem com os punhos fechados, fora da janela. Ela acenou, também mostrando o punho, e gritando um conhecido e comovente grito de guerra:

    - Iu-huuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu...!!!

    O ônibus demorava. À medida que eram depredados e incendiados, a empresa os recolhia para o pátio da garagem, setor de recuperação. Poucos sobraram na pista. Daí a demora em aparecer um, e os pontos enchendo... Mas, era guerreira. Pagava, com certa altivez, o preço antigo da passagem – dois reais e setenta e cinco centavos, uma conquista das vozes das ruas. E mais, na roleta, implicava com o trocador:

    - Só tenho nota de cinquenta. E se reclamar, vamos todos para a DP e eu vou cobrar a nota fiscal...!

    Nesse dia, eram esperados milhares de manifestantes. A imprensa já estava em seus postos-chave, helicópteros fazendo reportagem, um clima de maio de 68 em pleno junho de 2013! A diferença era que, agora, aqueles que protestavam em 68 encontravam-se no poder dos governos sendo protestados.

    Ela conseguiu um lugar nas primeiras poltronas. O veículo andava tão devagar, que parecia estar em marcha a ré. Passageiros davam muxoxos, que iam crescendo em número, acumulando irritação. Até que chegou a ela. A moça perdeu a paciência e abriu a bolsa, tirando de lá sua arma de combate mortal – o celular. E não era um simples celular, mas o seu celular-caveira, que usava em operações de tática de guerrilha. O aparelho, preto, tinha uma caveirinha rosa, de metal, com batom e brincos azuis. Olhou para trás, percebeu a indignação estampada no rosto dos demais passageiros. Então, levantou discretamente o aparelho, apontou um dedo para ele e piscou o olho. Os passageiros entenderam e fizeram sinal positivo com o dedo polegar. Ela iria filmar o motorista dirigindo.

    Quando focalizou a câmera sobre o alvo, teve uma surpresa. O motorista falava ao celular e dirigia o coletivo com apenas uma das mãos. E ela começou a filmar bem no momento em que fazia uma curva fechada, em ladeira íngreme.

    - Absurdo... Absurdo...

    Dizia umas palavras como a preparar texto para as imagens. Instinto jornalístico. O motorista, percebendo a moça pelo reflexo do vidro, notando que era filmado, em vez de desligar o aparelho ou disfarçar, deu um belo sorriso amarelo-tabaco, perguntando com ironia:

    - Tá gravando? Pode gravar.
    - Absurdo... Absurdo...

    O motorista parecia não estar dando bolas para o emprego. Devia estar contanto com outra atividade remunerada, na vida. De repente, ele puxa um pequeno fio preto, detrás da cadeira, onde pendurava o casaco, e o pluga ao celular. Aperta um botão e começa a tocar um grande sucesso de James Brown. Aumenta o volume. Freia o ônibus (na verdade, nem precisava), sobe no capô e começa a dançar no ritmo de soul:

    - Get up! Get on up...!

    Ela desenvolvia o texto, antecipando a edição das imagens, mais tarde, quando postasse na web:

    - Ab-sur-do... Ab-sur-do...

    Então, num ato de coragem, ou de simples imperícia, chegou-se ao motorista e disse:

    - Fique sabendo que o senhor fará muito sucesso na Internet, viu!

    Saltou do ônibus. Desistiu de ir ao centro da cidade. Tinha perdido a hora marcada com a galera, nem adiantava mais correr. Melhor seria retornar à sua base doméstica, à trincheira dos tablets e smartphones, e denunciar mais esse absurdo ao mundo. Não era pelos 2,75. Agora, a sua luta seria pela educação dos motoristas. Principalmente a musical. Além disso, o seu blog – o Mother Funker – faria um sucessão.

    Pena que nada foi gravado. Aliás, o aparelho gravou, mas o filme não foi salvo. Ela se esqueceu de salvar o registro, e ele se perdeu. Desapareceu, evaporou-se, encaminhando-se para o universo das coisas deletadas.

    - Absurdo... Absurdo...

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    sexta-feira, 25 de outubro de 2013

    CELULARES VII





    CELULARES VII
    TÁ LIGADO?
    Maurício Pássaro
    Outubro2013
     
     
    Ela não imaginou que, em seu coração, ficaria refém de um desconhecido. Quer dizer, de um desconhecido que a conhecia, e a fundo; sabia detalhes de sua vida, e ficava telefonando. Ele agregou justamente aqueles elementos que levam a mulher a sucumbir à força de um mistério. A dica número um do manual de Don Juan é chamar a mulher de “mistério”. No caso presente, ele fazia isso em forma velada, através de sinais, elevando o mistério à categoria do insuportável.
     
    Seu timbre de barítono gripado ajudou. Perto dele, Cid Moreira tem a voz da Paulinha Toller, do Kid Abelha. Sabia se expressar bem, certamente era culto e tinha bom emprego. Um gerente regional de empresa estatal, daí pra cima (o que faz num ônibus...?). Homem observador, que sabe notar detalhes em uma mulher, nos vastos recantos de sua alma feminina. Ela já calculava a personalidade e o caráter do seu interlocutor. Precisava apenas encontrá-lo, a fim de confirmar.
     
    Porém, o mais grave era o sujeito ser desconhecido. Isso, não! O segredo era o segredo. Quanto mais ele ligava, mais sua voz adentrava aos ouvidos da moça, e mais o mistério a perseguia. Já não conseguia realizar os afazeres da casa. E na rua, tentava perceber algum olhar revelador, um ato falho, por descuido, talvez o rapaz fosse tímido (o que intensifica o mistério). Quem sabe não estivesse apenas aplicando uma estratégia para conquistá-la?
     
    Eram três horas da madrugada, não resistiu e ligou para a sua melhor amiga, que não estava dormindo, mas acordadíssima, divertindo-se no meio da night. Ao fundo, o vozerio do barzinho, música, gente cantando Espanhola no karaoquê, ruído de garrafas. Contou tudo o que estava acontecendo, desde o primeiro telefonema, enquanto sua amiga pacientemente lhe participava um “ran-ran...”
     
     
    - Ran, ran...
     
    Depois de uma hora e quarenta desabafando, ela perguntou sobre o que achava do seu caso, dos telefonemas, do número desconhecido, do vozeirão do Cid Moreira, da Paula Toller:
     
              - Adorei...
              - Gostou da minha estória, amiga?
              - O último CD do Kid Abelha tá show!
     
    Respirou fundo, olhou o relógio, o celular amarelo, mudo, e insistiu na opinião da amiga. Talvez não tenha explicado direito; e o barulho das ruas... Mais uma hora explicando (ai, a conta!), para ouvir da amiga, diretamente da night.
     
    - Que gracinha! Eu te amoooooo! Aquela música, como era mesma? “Fixação / Fantasmas no meu quarto /...”
     
    Bateria arriada, ligação caída. Aquela cretina não retornou mais. A sacripanta. A desventurada. A cachorra. Dia seguinte, sem querer, esbarraram-se na agência bancária. Ou quase. Uma estava saindo, e a outra, chegando, no mesmo giro da porta de segurança. Uma, com cara de ressaca, não percebeu a outra. A outra, ainda ressentida, fingiu que não via.
     
              - Cretina.     
     
    É claro que existe aqui uma rica simbologia que pode ser tratada. Há elementos paradigmáticos que enriqueceriam uma análise psicológica – entrada, saída, portas, segurança. Mas, não vale à pena estender o caso. Não vale.
     
     
     
    Maurício Pássaro
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    CELUALARES VI






     
    CELULARES VI
    TÁ LIGADO?
    Maurício Pássaro
    Outubro/2013
     
     
    Ele estava sofrendo uma espécie de culpa. Como assim? O negócio de venda de MP3 e pilhas ia de vento em popa. Sua equipe aumentara, franquias começavam a surgir em outras cidades. E embora a concorrência também tenha começado a notar a genialidade do plano, copiando e colando a ideia em sua tela de estratégias, não era esse o motivo da culpa. Tratava-se de um mercado em plena expansão.
     
    Ficou pensando nela. Como assim? Ora, foi devido a seu mau hábito de falar alto, em público, ao celular, que ele teve a ideia do MP3 e das pilhas. Não era justo que usufruísse o lucro exclusivamente, já que a moça participou, mesmo não sabendo, mas participou. Cada aplicação que fazia na bolsa de valores, com os dividendos da atividade, uma leve pontada no peito. Era homem de consciência – pior para ele.
     
    Ela provocara o episódio. Não fosse o seu espírito corajoso, sua memória fantástica para malfeitos, se não fosse a sua mania obsessiva de comunicar receitas de comidas gordurosas, com o claro intuito de fazer os passageiros vomitarem... Ele precisa reconhecer que aquelas viagens torturantes tiveram boa serventia para a sua carreira profissional. O curso de pós-graduação na faculdade teve que ser trancado.
     
    Foi assim que, vendo a moça entrar no veículo, o sentimento de remorso logo se iniciou, fazendo-lhe corroer a alma. À noite, não resistiu e ligou pra ela.
     
    - Oi. Sou eu.
    - Eu quem?
    - Você sabe.
     
    Ela tinha terminado com o Tatuia (que não era o cachorro, como ele pensara inicialmente) e foi logo dizendo que não queria falar com ninguém, nesse estado triste em que se encontrava. Terminando com ele, aproveitou para acabar com a imagem dele também nas redes sociais, postando fotos comprometedoras.
     
    - Lembra? Você achava que Tatuia era o nome do meu cãozinho.
    - Lembro sim. E você não tem cara de quem namoraria um cachorro.
    - É? Mas, pensando bem, aquele cretino era um cachorro, sim...
     
    A bateria do celular dele fez sinal de acabar, a conversa caiu de linha. Ele suspirou aliviado, pois a conversa mudava de tom, passando ao setor amplo das cretinices humanas; corria o risco de ser equiparado ao cachorro, quer dizer, ao cão.
     
    E ela passou o resto da noite, não dormiu, sem tirar os olhos e os ouvidos do celular, a ver se aquele número desconhecido tocava de novo.
     
     
    Maurício Pássaro
     
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    quarta-feira, 23 de outubro de 2013

    CELULARES V

     
    CELULARES V
    TÁ LIGADO?
    Outubro/2013
    Maurício Pássaro
     
     
    Boa lição­­­­ que ela aprendeu foi não falar mais o número de celular, dentro de ônibus, em alta voz. Um dia lhe anotaram o número, e depois, trote. Não exatamente trote, mas tentativa de reclamação, com resguardo do anonimato. Um senhor, passageiro do coletivo em que estava, anotou o número e ligou depois. Disse a ela apenas que lhe acompanhava constante e diariamente, indo ao trabalho, às vezes na volta. Mas, não descreveu a si mesmo, não se identificou; nenhuma pista. Número desconhecido. Pura covardia.
     
     
    Mas, ele achava isso dela também. Covarde e cruel foi a moça quando, sem avisar ou preparar os demais passageiros (fones de ouvido, comprimidos para dor de cabeça, plásticos de vômito) iniciou o curso completo e gratuito sobre a sua vida. Gratuito não, porque custou muito aborrecimento coletivo, e isso não tem preço. Fez triplicar a vendagem de MP3 e pilhas, na barraca de camelô do ponto final. Ao menos, ajudou alguém.
     
    Foi aí que teve a grande ideia de vender aparelhinhos e pilhas, dentro do ônibus. É claro, formou equipe convocando cinco camelôs que vendiam balas no entorno do quarteirão. Certo dia, como numa visão do além, ele apareceu aos cinco, estavam reunidos na praça, ao fim do dia, conversando. A luz do sol poente bateu dourada sobre ele, criando uma luminosidade em seu entorno, como se fosse uma aura. Chegou e lhes disse:
     
    Esqueçam as balas e me sigam. Vou lhes apresentar o ramo de negócio que vai ser o futuro.
     
    E deitou a explicar a estória do sofrimento que passava no coletivo diariamente, onde teve este insight: assim como ele, muitos deveriam passar o mesmo, durante a longa viagem, ouvindo estridentes papagaios-humanos ao celular, que falam ao aparelho, não porque precisam, mas para fazer o tempo passar (ou o tempo voa, ou não passa; não há meio termo).
     
    Os meninos começaram vendendo bem. Na primeira viagem, ele mesmo simulou comprar, só para incentivar a venda em meio aos demais passageiros. Combinaram o disfarce. Em seis meses apenas, a equipe faturou o suficiente para disseminar e consolidar o negócio.
     
    Dentre os vendedores, uns pensaram em abrir uma loja, mas ele prontamente lhes explicou que tal formato não funcionava mais. É preciso que o MP3 e as pilhas estejam onde houver gente mal educada falando alto, em público. Ou seja, quase em todo lugar. Garantido sucesso de vendas.
     
    Maurício Pássaro

    MINHA CANÇÃO








    MINHA CANÇÃO

    Por Maria José Martins de Oliveira e Edmílson Martins
    Outubro/2013

    Nasci na beira do rio
    Tenho saudades de lá
    Já não vejo água correr
    Pois estou perto do mar.

    Lá na minha Barra Mansa
    Vivi toda minha infância
    A vida lá era boa
    Singela como criança.

    A criançada brincava
    Tomava banho de rio
    Feliz a todo momento
    Fosse sol, calor ou frio.

    Pensando com meus botões
    Bem contente morei lá
    Aqui já não vejo rio
    Só vejo águas do mar.

    Não permita Deus que eu morra
    Sem que um dia volte lá
    Para rever tantas coisas
    Que não encontro por cá.

    terça-feira, 22 de outubro de 2013

    AS ENCHENTES DO PARAÍBA


       Enchente que atingiu Barra Mansa em 1966 (Av. Presidente kenedy)
     
    AS ENCHENTES DO PARAÍBA
     
                Maria José Martins de Oliveira
                 e Edmílson Martins
                  
                       Rio, Outubro de 2013.
     
    Às margens do Paraíba
    Algumas casas havia
    Que ficavam inundadas
    Quando o rio muito enchia
    Famílias em perigo
    Exército socorria.
     
    Soldados bem solidários
    Enfrentavam as enchentes
    Com muita disposição
    No ombro levavam a gente
    Para dentro do quartel
    E ficávamos contentes.
     
    Crianças se divertiam
    Muito felizes ficavam
    Adultos preocupados
    Quando meninos brincavam
    Os grandes ficavam tristes
    Os pequenos se alegravam.
     
    Nos ombros da soldadesca
    A gente descontraía
    Quando no meio das águas
    Alguma cobra surgia
    Muitas emoções sentíamos
    Naquela tal travessia.
     
    Lá no quartel alojados
    Éramos bem recebidos
    Com lanches e dormitório
    Para todos bem servidos
    Crianças muito contentes
    Brincavam com alaridos.
     
    Tudo era novidade
    Para toda a criançada
    Brincávamos nos vagões
    Juntos com a bicharada.
    Galos, galinhas, cachorros,
    Gatos e passarinhada.
     
    Quando a enchente passava
    E tudo voltava ao normal
    Os grandes ficavam bem
    Pequenos ficavam mal
    Pois terminava a aventura,
    O momento especial.

    domingo, 20 de outubro de 2013

    CELULARES III





    Maurício Pássaro

    CELULARES III
    Tá ligado?

                  Maurício Pássaro

    A reunião estava marcada para as nove. Cada diretor, diretamente de sua filial, em seu estado, participando da teleconferência. Ao vivo e em cores. Tempo real. A era da tecnologia.
    ...
    O Chefe estipulou uma pauta. Assuntos importantes deveriam ser tratados, demandas estratégicas, novos nichos de mercado, a logística do transporte... O chefe pensa em tudo.

    Doze telas são abertas e nelas doze representantes, aqueles que dirigem o negócio fora da matriz (e são conhecidos como "os apóstolos"). O Chefe quer saber por que o grupo de clientes do setor Sul não fechou contrato. E logo se apresentou alguém, numa das telas, para explicar as razões:

    - O Departamento jurídico. Advogados demais...
    - Realoque metade deles para o setor de fronteiras.
    - Certo, Chefe.

    A Phirma tinha prestígio no mercado, tinha solidez. E também a melhor estrutura de informática – hoje, o calcanhar-de-aquiles de qualquer empreendimento de sucesso. O Chefe foi orientado, por um supervisor, a investir em equipamentos eletrônicos de última geração, talvez um satélite próprio ou um acelerador de partículas. Quem imaginaria, não muito tempo atrás, que uma reunião importante de negócios pudesse acontecer virtualmente, com os participantes reais interagindo de longe? Economia fantástica de tempo. Os engarrafamentos de trânsito causam prejuízo de bilhões de reais, e os homens sérios de negócio não têm direito a esse luxo.

    A concorrência não dá tréguas: ela obriga o Chefe a seguir os passos tecnológicos. A espionagem avança no mundo, ele teve que desenvolver sistema de segurança para bloquear os hackers da Casa Branca. E depois que a roda redonda se mostrou melhor e mais eficiente que a roda quadrada, quem vai continuar com a primeira? Pois, o Chefe adora inovação. É homem de visão. Poucos assim, neste mundo.

    Por isso, depois que o governador mandou instalar o bloqueador de sinais de celular nos presídios, não teve jeito, o Chefe teve que fazer investimento em T.I. De um presídio de segurança máxima, ele administra seus negócios pelo país e o mundo. Assaltos, sequestros, golpes do telefone, campanhas eleitorais, lobbies em legislativos, muita coisa.

    Diretores e gerentes regionais da Phirma já propuseram ao Chefe outro endereço para se estabelecer, mas ele é esperto: em que outro lugar usufruirá a segurança máxima e a tranquilidade para trabalhar sossegado?

    O Chefe está achando o mundo muito violento. E o trânsito...



    Maurício Pássaro


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    celulares II


     

    Mauricio Pássaro


    18 de outubro

    CELULARES II
    Tá ligado?

    O tempo passou, o cara não ligou mais pra ela. Coisa de desocupado. Vai ver, encontrou o que fazer e não amola mais. Entretanto, numa tarde de chuva, mesmo com os sinais de celulares pegando mal, o aparelho da moça disparou, o amarelo novamente, resolveu tocar, dentro do coletivo: refrão de um clássico de Michel Teló. Ela aguardava telefonema de amiga.
    ...
    - Alô! Ledinha!

    Não, não era a Ledinha. Voz grave, de homem. Número desconhecido. Era ele, o mal educado, depois de algumas semanas.

    - Olá. Quanto tempo! Quer dizer, estivemos ontem, no mesmo ônibus...

    - Escute aqui, você tem que parar com isso. Vou dar queixa na polícia!

    - Calma. Só liguei pra saber como está o seu cãozinho, o Tutuia. Ele melhorou?

    - Tutuia é o nome meu namorado!

    O interlocutor desconhecido fazia confusão. Do jeito mimado que ela falava, naquele outro dia ao celular, parecia que estava em diálogo com o seu cachorrinho.

    - Você é possessiva. A gente conhece uma mulher possessiva, pela voz.

    - Ora, essa. Eu? Possessiva? Não tenho que lhe dar satisfações! Além do mais, o namorado é meu e...

    - Tá vendo... Ele é “seu”. Já que você nos participou a conversa – alugando os ouvidos de quarenta e dois passageiros, mais o motorista e o trocador, e mais tantos desencarnados, pois eu sou espírita – acho que posso também dar uma sugestão. Deixe o Tutuia jogar bola com os amigos, pela manhã, nos fins de semana. É coisa de homem. Depois ele volta. Cansado e perfumado de cachaça, mas volta. Mas, se você encher muito o saco dele, ele vai embora.

    Ela não estava acreditando em tamanha petulância. Não se conteve e arremessou o celular na bolsa, naquela região onde cabe o infinito, uma espécie de buraco negro interdimensional. Uma vez o cãozinho se escondeu na bolsa e só anunciou presença quando ela se sentou à mesa do restaurante, na hora do almoço.

    Maurício Pássaro
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    CELULARES I



    CELULARES I
    TÁ LIGADO?

     Maurício Pássaro



    Veríssimo, o Luis Fernando, já nos revelou que faz parte de um grupo seletíssimo, no mundo, que se recusa a usar esse aparelhinho que serve para tanta coisa, inclusive para falar com alguém do outro lado da linha. Somos dezessete – muito poucos, mas e daí?
    ...
    Desproporcional, eu sei. Sem contar que grande parte dos usuários tem mais de um celular. Sem contar que existem os chineses. A luta é grande e consiste em escapar, o quanto possível, da necessidade de carregar o telefone móvel, pra cima e pra baixo, como fossem óculos. Não é fácil. Ele toca em qualquer lugar e quem fala nele, em via pública, esquece que não está em sua própria casa. Cinemas, teatros e reuniões de trabalho – nada escapa.

    Ela estava em sua casa, arrumando a bagunça da semana, quando o dito cujo tocou:

    - Alô?

    - Alô. Você não me conhece, a gente pega o mesmo ônibus quase todos os dias...

    - Quê?! Olhe, se for o golpe do sequestro, vou logo dizendo que sou professora da rede pública e não adianta...

    - Não é sequestro, não. Eu sempre estou lá, descansando de um dia estressante de trabalho, em minha poltrona, olhando a paisagem na janela, quando o seu celular toca e você fala a viagem inteira. Já ouvi de tudo. Acho que o pior dia foi quando você passava uma receita de fígado de boi batido no liquidificador. O Ônibus se mexia muito, e eu quase pedi para descer, não fosse o meu MP3, em alto volume, e uma técnica de respiração que aprendi no Youtube. Semana passada, você disse, em voz alta, o número de um aparelho, e eu anotei. Agora, estou ligando. Tudo bem com você?

    A moça tinha cinco celulares, cada qual com sua respectiva cor, para cada dia da semana. Nos dias inúteis da semana, usava o facebook. Foi o amarelo que tocou, e nele a voz de um estranho. Alguém que anotou o número do celular, enquanto ela se comunicava com outra pessoa. Tremenda falta de educação. Intromissão na vida alheia.

    - Falta de educação?! Fala sério! Você fala alto ao celular, conta a sua vida toda, os detalhes, observações íntimas e picantes, enfia nos meus ouvidos um monte de besteira, e eu sou mal educado? Ah...! Passe bem, moça!

    - Peraí! Alô...! Alô! O safado desligou. É número de orelhão. Que óóóódiooo...!

    Fechou o aparelho e o colocou na poltrona vazia, ao lado. Ficou olhando, pensando, meditando. Se ele tocasse novamente, se fosse o sujeito mal educado insistindo... Ela teria já umas boas palavras para dizer. Absurdo. Onde já se viu?

    Maurício Pássaro
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    sábado, 19 de outubro de 2013

    CELULARES IV

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    Mauricio Pássaro
    CELULARES IV
    Tá ligado?

    Mal a loja abriu, chegou uma senhora, de óculos, carregando chapa de exame médico, num envelope de plástico branco. Dirigiu-se ao balcão dos celulares.
    ...

    - Bom dia.
    - Bom dia, senhora. Em que posso ajudar?
    - Eu queria um celular para...

    O vendedor saltou de uma cadeira, atrás do biombo, pra melhor atender à freguesa.

    - Temos todos os tipos, tudo o que a senhora imagina. Esse aqui, por exemplo, faz quase tudo. Até abridor de lata... kkkkkkk... Brincadeirinha. Mas, além de filmar, ele capta as ondas do pensamento. A senhora pode dormir, colocando esse fone especial, e quando acordar, poderá ver o que sonhou, durante a noite.
    - Brincadeirinha?
    - Não. É sério. Chega a captar até o famoso túnel de luz, aquele que os doentes veem quando estão alucinando, no CTI.
    - Hummm...

    Não, não era isso o que buscava. Ademais, não estava mais a ficar sonhando com a vida, não após conhecê-la a fundo, não depois de saber um pouco mais sobre a natureza humana.

    - Claro, vejo que a senhora deseja algo mais simples. Deixe-me ver... Esse! Tem a tecla FPA – Função de Proteção Aérea. Se por um acaso um meteoro cortar a atmosfera, o aparelho avisa. Antecedência de 72 horas!

    A possível compradora olhou o rapaz por cima dos óculos, com cara de “não-é-bem-isso”:

    - Não é bem isso...
    - Claro, a senhora me perdoe. Temos um modelo aqui... Esse mede a pressão arterial e ainda informa a quantidade de sal ou gordura no organismo. Semana passada, eu vendi três, um médico e duas enfermeiras...

    Ela insistia:

    - Não é bem isso...

    Ele coçou o queixo, olhou a vitrine interna, e já era um olhar de desafio. Sim, aquela senhorinha ali procurava um aparelho especial, diferente. Com certeza, a idade determinava a escolha. Idosos são mais exigentes, já viram quase de tudo nas lojas da vida.

    - Não é bem isso, senhora?
    - Não é bem isso.
    - Eu percebi.

    Perder mais de trinta minutos com um cliente apenas é prejuízo – o vendedor tinha lido em algum lugar, um curso que baixou da web. De tudo conseguiu guardar essa lição. A senhora sorriu resignada:

    - Deixa, meu filho, deixa pra lá.

    O vendedor não sabia, mas tudo o que ele buscava era um celular do tipo que proporciona chamadas telefônicas. Já se dirigia à porta de saída, quando ainda tentou:

    - Eu só queria um celular para telefonar e ouvir a voz da minha filha, que está longe. Só pra isso.

    Então, o rapaz se desculpou humildemente, respeitando seus cabelos brancos, explicando que o tipo que ela queria estava em falta no mercado, e nem o modelo fabrica mais.



    Maurício Pássaro
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    quinta-feira, 17 de outubro de 2013

    MISSA DO GALO

                                                       
                                                      Igreja - Matriz de São Sebastião - Barra Mansa-RJ



    MISSA DO GALO
              Maria José Martins de Oliveira
                  C/parceria de Edmilson Martins
     
    No meu tempo de pequena
    Não podia imaginar
    Que levasse tanto a sério
    Coisas que ouvia falar
    Fazem pouco das crianças
    Que também sabem pensar.
     
    Quero contar uma estória
    Que comigo aconteceu
    Numa noite de natal
    Que para mim pareceu
    Ser normal e verdadeira
    Como o bom Jesus nasceu.
     
    Falavam da grande festa
    Que era a missa do galo
    Eu ficava intrigada
    E logo me deu um estalo
    Fui correndo à sacristia
    Pra ver o bendito galo.
     
    Escapei da minha mãe
    Que me dava proteção
    Curiosa fui correndo
    Por aquela escuridão
    Pra ver algum galinheiro
    Olhando com atenção.
     
    Não encontrando o tal galo
    Rápido voltei correndo
    Pra junto da minha mãe
    Que a reza estava fazendo
    Com o seu terço na mão
    E foi logo me dizendo:
     
    Você sumiu minha filha!
    Onde você se meteu?
    Eu fui procurar o galo.
    Meu Deus você não entendeu!
    Sente aqui vou explicar
    Que susto você me deu!
     
     
    Meia noite Jesus nasceu
    Então um galo cantou
    E queria anunciar
    Vinda do Nosso Senhor
    Daí a missa do galo
    Que rezamos com amor.
     
    A explicação da mamãe
    Me ajudou a compreender
    Que ali não havia galo
    E comecei a perceber
    Que na tal “missa do galo”
    Jesus iria nascer.
     
       Rio, outubro de 2013