terça-feira, 15 de setembro de 2009

RESGATAR OS VALORES DA NOSSA HISTÓRIA

Edmílson Martins

Julho de 1964. O tempo estava nublado e frio no Rio de Janeiro. Em todo o país, também, o tempo político andava nublado e a temperatura morna, em conseqüência do golpe militar iniciado no dia 31 de março e completado no dia da mentira – 1º de abril, evidenciando que a chamada “Revolução Redentora” significava uma grande mentira.
Num certo dia daquele mês de julho, na agência do Banco do Brasil, na Tijuca, estava eu diante do inspetor da Comissão Geral de Inquérito que apurava a participação de funcionários do Banco do Brasil nas greves de bancários. A participação social e política dos bancários fora intensa nos anos anteriores ao golpe. Eu tinha feito um requerimento de férias, que precisava do “de acordo” do inspetor.
- O senhor participou da última greve de bancários, certo? – perguntou o inspetor (sisudo, autoritário e arrogante), com uma lista de nomes sobre a mesa.
- Certo – respondi.
- Mas o senhor, com menos de um ano de Banco do Brasil, já participando de greve?
- Sim, a greve era para todos os bancários, independente do tempo de trabalho.
- Mas a greve foi decretada pelos comunistas!
- A greve foi decretada pela categoria bancária, em assembléia com mais de 15 mil bancários – retruquei.
- O senhor foi induzido pelos comunistas?
- A minha participação foi consciente e espontânea. Questão de reivindicação e defesa de direitos trabalhistas.
- Por que, se os funcionários do Banco do Brasil já ganham bem? – indagou o inspetor – já em voz alta e tom autoritário.
- Por respeito a uma decisão da assembléia e porque entendia ser a greve justa – respondi.
- Mas a greve era política – falou o inspetor, repreensivo, como se política fosse crime.
- Para mim, a greve foi uma decisão extrema, motivada pela intransigência dos banqueiros, diante das justas reivindicações dos bancários.
O inspetor manuseou as folhas de papel, verificou alguns nomes sublinhados de vermelho e perguntou se eu conhecia alguns deles. Respondi que conhecia todos. Eram colegas do Banco do Brasil e sindicalistas.
Parou de fazer perguntas, anotou alguma coisa na lista de nomes, olhou para mim, denotando algum espanto e (talvez) simpatia e disse:
- Pode ir colega. Boas férias.
Despedi-me e saí da sala. No corredor, encontrei um colega, que me contou que ao ser interrogado pelo inspetor dissera que a sua participação nas greves teria sido para desestabilizar o Governo João Goulart, que servia ao comunismo. Havia mesmo um esquema para desestabilizar o governo, organizado pelo sistema capitalista. É triste saber que trabalhadores participaram daquela terrível manobra.
Quando voltei para a agência de Madureira, onde trabalhava, encontrei os colegas apreensivos, porque também tinham participado das greves.
- O que o inspetor quis saber? – indagavam uns.
- Houve alguma ameaça de punição? Indagavam outros.
O clima era de frustração. O medo tomava conta de todos (medo que até hoje reflete na sociedade). A ditadura se estabelecia, impondo a derrota, a frustração e o medo. Pela mentira, pela força bruta, pela covardia.
A mim e a outros companheiros que buscavam resistir ao golpe, muitos diziam, como na música “Ronda” de Adoniram Barbosa: “Desistam, essa busca é inútil.” Mas não desistíamos. Foram 20 anos de resistência, de enfrentamentos, com perseguições, prisões, torturas, mortes, “cenas de sangue” – não “em um bar da Avenida São João”, mas nos porões da ditadura -, vitórias e derrotas.
Naqueles tempos de luta e resistência havia motivações e referências históricas vivas, que animavam toda a caminhada como: a resistência dos vietnamitas ao império americano; a revolução cubana, enfrentando heroicamente a ofensiva americana; o posicionamento da Igreja Católica, tendo à frente o papa João XXXIII, na defesa da justiça social, com as encíclicas sociais “Mater ET Magister”, “Pacem in Terris” e “Populorum Progressio”; as figuras históricas e combativas de d. Helder Câmara, do pastor americano Martin Luther King, do “pequeno” grande general vietnamita Giap – a raposa das selvas -, do bravo Che Guevara, etc. Entre nós permaneceram vivos o idealismo e combatividade de muitos companheiros sindicalistas, líderes populares e políticos. Uns ligados ao pensamento marxista e outros aos ideais cristãos, participantes de movimentos sociais da Igreja Católica. Todos imbuídos do sentimento de participação na pluralidade e universalidade, propostos pela Igreja, tendo em vista a coexistência pacífica entre pessoas e povos de boa vontade.
Nesse sentido, ressalte-se a compreensão e disposição de Luiz Maranhão, líder marxista que se empenhou, junto com Alceu de Amoroso Lima, pensador e líder católico, d. Hélder Câmara e outras lideranças , pela unidade de marxistas, cristãos e pessoas de boa vontade pela defesa das liberdades democráticas.
Entre outros exemplos que são referência histórica, podemos citar d Eugênio Sales, que sendo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro , sem alardes, de maneira discreta, acolheu e ajudou milhares de refugiados políticos, perseguidos por ditaduras latino-americanas, usando o cargo de cardeal a serviço do bem, como foi ensinado por Jesus Cristo; D. Evaristo Arns, cardeal de São Paulo que encabeçou o grupo “Tortura Nunca Mais”, denunciando os crimes da ditadura militar, etc.
Os ambiciosos do poder, do dinheiro e do lucro, impõem, hoje, uma “nova” ideologia, uma “nova” cultura. Substituem o “penso, logo sou” pelo “sinto, logo sou”, e pelo “consumo, logo existo”, que significa trocar os valores perenes pelos passageiros, pelo “aqui e agora”. Significa substituir o pensamento, a reflexão pelo sensível corporal, pelo consumismo. Daí o desprezo pelos valores do passado, pelas figuras que plantaram as bases da nossa História. São os valores da chamada sociedade pós-moderna, que estimula simplesmente o consumo e o prazer. Isso atende em cheio aos interesses gananciosos do capitalismo neoliberal, que considera o ser humano simplesmente como instrumento de lucro e dominação.
Por isso, rompendo o esquema do capitalismo neoliberal, precisamos resgatar os valores da nossa História, necessários para animar o nosso povo na luta pela construção da sociedade livre e democrática.
Por exemplo, o que mantém viva a doutrina cristã, apesar das distorções de muitos dos seus seguidores, é a guarda cuidadosa da memória de Jesus, da sua luta e de seu sacrifício pelo bem da humanidade. Também a guarda da memória e do testemunho dos verdadeiros discípulos, que ao longo da História, com muitos mártires, empenharam-se na construção do projeto de sociedade, onde todos tenham vida em abundância, proposto pelo Mestre Jesus.

Rio, março de 2009
Edmilson Martins de Oliveira

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