Edmílson Martins
Edmílson Martins de Oliveira - julho de 2009
Quando eu era criança, ouvia histórias contadas pelos mais velhos. Histórias vividas por eles e por seus antepassados. Ouvia também as chamadas “estórias de Trancoso”: ficções com sabor de realidades. Lições de vida, transmissão de experiências e sabedoria passadas aos mais jovens. Hoje, já passando dos 70, percebo o quanto aqueles contadores de histórias e de estórias influenciaram no meu aprendizado. Por isso, hoje, eu conto histórias:
A partir do final de 1968 e durante os anos de 1970, principalmente no governo do general Médice, intensificou-se a repressão aos movimentos populares que resistiam à ditadura militar. A luz que se vislumbrava no final do túnel foi ofuscada por enormes pedras colocadas no caminho. O nosso país voltava à escuridão, dessa vez, total. O povo, que antevia uma luz, ficou nas trevas.
A perseguição política aos que não concordavam com o regime opressor atingiu duramente o povo brasileiro. Movimentos organizados foram desmantelados, ativistas foram presos e muitos, além de presos, torturados. Vários foram os assassinatos nos cárceres, praticados por carrascos do sistema da opressão. Outras pessoas, para não serem presas ou morrerem, exilaram-se. Foram silenciadas as principais lideranças do povo, que ficou sem vez e sem voz.
Mas o regime ditatorial não conseguiu calar a voz de todos. Muitos, mesmo na escuridão, procuraram organizar a luta de resistência. Tateando, procuraram tirar fogo das pedras, juntar gravetos e acender fogueiras. Com o uso da sabedoria e da criatividade, começaram a luta para remover as pedras do caminho em busca da luz.
Certa vez, a madre Teresa de Calcutá foi criticada por um jornalista:
- Irmã, com esse seu trabalho de assistência aos pobres, a senhora só está legitimando a exploração capitalista.
A madre, com a serenidade de quem, com convicção, fez a opção cristã pelos pobres, perguntou ao jornalista:
- Meu filho, quando a luz de sua casa apaga-se o que você faz?
- Acendo uma vela – respondeu o jornalista.
- Pois o mundo está sem luz e eu estou acendendo minha vela, acenda a sua também – devolveu a irmã.
Então era o que tínhamos que fazer: acender velas, porque o nosso país estava nas trevas. E cada um de nós devia fazer a sua parte. No escuro é que não podíamos permanecer. A escuridão provoca medo, produz incertezas, cria fantasmas, dá a sensação de insegurança. As pessoas, sem a luz, perdem o rumo, ficam confusas e, muitas vezes entram em pânico e perdem a noção do equilíbrio e desanimam. Era preciso agir e rápido, não deixar que o desânimo tomasse conta de todos.
Em casa, conversávamos eu e a Maria José sobre o que fazer. Eu tinha sofrido 46 dias de prisão por ser presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. A entidade estava sob intervenção do governo e a categoria bancária intimidada por força da perseguição política. Outras organizações populares estavam desmanteladas, os partidos políticos controlados. Até na Igreja estava difícil conversar sobre a realidade social e política do país. Estava difícil reunir até mesmo os ativistas que escaparam da grande tribulação.
Mas alguma coisa precisava ser feita. Não seria um poder medíocre, movido pela ganância, pela força do dinheiro e da injustiça que se sobreporia ao poder das ideias, da justiça e da esperança. Nossa convicção estava na força transformadora do Evangelho, que nos ensina: “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. “Sede prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas” (MT 10). E mais: “No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33). E “Vós sois o sal da terra e luz do mundo”. E “Passará o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão”. São palavras do Mestre Jesus. Não haveria, portanto, nada a temer.
Lendo “Atos dos Apóstolos”, escrito pelo evangelista Lucas, refletimos sobre a ação dos primeiros cristãos, que se reuniam em casas de família para a oração, partilha e reflexão sobre os ensinamentos de Cristo, buscando forças para a missão que deviam desempenhar: a mudança do mundo. E chegamos à conclusão que podíamos reunir pessoas em nossa casa. Tínhamos que nos conscientizar dos dons do Espírito Santo e sermos criativos..
Levamos nossas reflexões a outras pessoas. Faríamos reuniões em casas de família. A princípio, em festinhas de aniversário. Enquanto comemorássemos, conversaríamos, analisaríamos a situação política e buscaríamos saídas. Inicialmente, o importante era reunirmos pessoas, juntar o rebanho disperso pelo ataque dos lobos. E começamos em nossa casa. Juntamos muitos amigos, independente de credo ou convicção política.
Com o tempo, as pedras foram sendo retiradas e as visões se clareando. Nas relações familiares estabelecemos uma trincheira de luta contra a ditadura. Nessas reuniões, podíamos reunir até os companheiros mais visados pelas forças da repressão. Com alguns ativistas, as discussões foram-se aprofundando. Com o pessoal da Igreja discutíamos o compromisso social dos cristãos, cuja missão é impregnar a sociedade do sentimento de solidariedade, justiça, esperança, liberdade e paz. Nessa reflexão tivemos a ajuda de alguns sacerdotes comprometidos com a Doutrina Social da Igreja. Nesse momento, a Igreja já começava a assumir a defesa do povo, reclamando o respeito aos direitos humanos.
E não podíamos deixar de aprofundar essas discussões com companheiros do movimento sindical, principalmente bancários. Inicialmente eram poucos, uns oito. Quase todos motivados por ideias marxistas, eram pessoas de boa vontade, com muita sede de justiça. Eram companheiros de luta, vítimas da perseguição política da ditadura militar.
Nós tínhamos plena consciência dos ensinamentos do Evangelho, dirigidos a todos os seres humanos. “Glória Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” - disseram os anjos aos pastores, ao anunciarem o nascimento de Cristo. Lembrávamos também do sermão da Montanha, que dizia: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.”; Bem aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Aqueles companheiros estavam enquadrados nesses princípios evangélicos: eram homens de boa vontade, integrados na luta pela justiça social, por isso, sofriam perseguições. Eram homens de bem, companheiros de luta. Podíamos e devíamos acolhê-los em nossa casa. Tínhamos que andar todos juntos.
Assim, a nossa casa transformou-se num centro de resistência à ditadura. A princípio, com o país ainda no escuro, tateávamos, com reuniões disfarçadas. Mas, à medida que as pedras iam sendo removidas, a luz aparecia e as reuniões tornavam-se mais abertas e amplas E, a partir de reuniões como as nossas, cresceu o movimento de articulação, que muito contribuiu para a conquista da reabertura democrática.
Estou contando essas coisas, não por simples lembrança, ou saudosismo, mas para valorizar a nossa memória e dizer que as pedras ainda não foram totalmente retiradas e a luz do final do túnel ainda não resplandece completamente. Dia após dia, os inimigos da liberdade colocam pedras no caminho, tentando obstruir a caminhada do povo rumo à liberdade plena. O trabalho de remoção é permanente e deve reunir sempre, em mutirão, todas as pessoas que lutam pela liberdade, todos os homens e mulheres de boa vontade.
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