LIVRES NA PRISÃO
Edmílson Martins
Maio/2022
1972. Ditadura sangrenta. General Médici, o ditador de plantão. Homem frio, desumano, perverso. Não tinha um pingo de sensibilidade humana. Governava o Brasil com mão de ferro, a serviço do sistema capitalista, que promovia ditaduras em toda a América Latina. Serviçal do poder econômico, perseguia, prendia, torturava os que se opunham ao odioso sistema. Nesse processo de perseguição, muitos opositores até foram assassinados.
Naquele momento de terror, estava eu preso em cárcere da Polícia Federal, por ser presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Comigo, três companheiros: Xerez, Roberto Martins e Antônio Imbiriba da Rocha, bancários e aguerridos militantes sindicais
Xerez, o mais idoso, ficou arrasado com sua prisão. Ficou muito triste. Não entendia por que estava preso. Roberto e Imbiriba, homens com cerca de cinquenta e cinco anos, sabiam que estavam presos por causa da justa luta em defesa da justiça social. Não se entristeciam. Estavam sempre alegres. Conheciam a História e sabiam que os justos sempre sofrem perseguições.
Eu era o mais jovem. Tinha trinta e três anos. Embora surpreso, sabia por que estava encarcerado. Era consequência da luta por justiça social. Isso me confortava. Mas ficava ainda mais confortado ao ver a certeza, alegria e a esperança daqueles dois companheiros, que nunca desanimavam. “Não vamos desanimar, estamos no caminho certo”, diziam eles.
Roberto, pai de família, com esposa e filhos já criados, era dedicado a muitas leituras. Tinha vastos conhecimentos. Estava na luta sindical por idealismo, para lutar por uma sociedade mais justa. O Imbiriba, também pai de família, com esposa e filhos ainda jovens. Era muito dado a leituras, com muita prática e conhecimentos da luta política e social.
Eu, também pai de família, com esposa e dois filhos: Maurício de quatro anos e Rinaldo de dois anos. Motivado pelos princípios cristãos, estava na luta sindical, porque sonhava com uma sociedade justa, democrática e fraterna. Estava na faculdade de letras, no curso de Português e Literatura. Pedi logo a Maria José que me levasse uma porção de livros, entre eles, a Bíblia. Pronto, a cela virou uma sala de leituras. Foram quarenta e seis dias de estudo e reflexões.
Eu, lia muito a Bíblia e outros livros e provocava muitas discussões acerca da vida, da sociedade, do mundo. Roberto e Imbiriba, sempre joviais e cheios de esperança, dados ao debate e às reflexões, participavam intensamente das conversas.
Eles, que se diziam não cristãos, passaram a ler a Bíblia com muito interesse e, às vezes falavam comigo: “Caramba, a Bíblia tem coisas muito interessantes, que não conhecíamos”. Liam os Atos dos Apóstolos e comentavam: “aqueles homens estavam tão convictos das verdades pregadas por Jesus Cristo, que por elas deram a vida”. Liam aquelas passagens em que os apóstolos eram perseguidos e presos, porque espalhavam a mensagem de libertação pregada por Jesus. E Viam certa semelhança com a nossa prisão. Estávamos presos porque lutávamos por justiça e libertação.
Os carcereiros viam a alegria do Roberto e do Imbiriba e não entendiam. “Como pode vocês, homens de mais de 55 anos, presos e com essa alegria toda? Quanto a mim, como não demonstrava tristeza e respondia às inquirições, com serenidade, diziam: “você não é deste planeta”. Os policiais não entendiam, na sua pequenez, por que a gente não se perturbava, diante daquela situação humilhante do cárcere.
Foram 46 dias de prisão física e de conversas, debates e profundas reflexões. Na verdade, estávamos na prisão, porém livres. Havia, entre nós, alguns jovens estudantes, idealistas e alguns jovens da marginalidade. Em dados momentos, todos prestavam atenção às nossas leituras e conversas e queriam participar. Liam alguns livros dos que a gente lia e pediam explicações.
Quando saímos da prisão, percebemos nos companheiros de cela uma mistura de alegria e tristeza. Alegria pela nossa libertação e tristeza pela perda da nossa companhia. Pediram para deixarmos alguns livros com eles. Alguns queriam ficar com a Bíblia. Algum tempo depois, encontrei na rua um dos meninos estudantes. Quanto aos meninos da marginalidade nunca mais tive notícias deles. Estarão vivos? Talvez...
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