AS MUDANÇAS
Edmílson Martins
Maio/2022
Na década de 1950, nas férias escolares, quando eu voltava de Crato-CE para o sítio Ipueira, onde nasci e vivi a minha infância, ia de trem até o lugarejo chamado Ingazeiras e de lá ia para o sítio de cavalo ou de burro.
A viagem era deliciosa. A começar pelo trem, que corria entre matas, planícies e beirando serrados. Os passageiros deliciavam-se com as paisagens: o matagal, plantações, gado pastando, rios. No tempo de chuva, rios cheios, matas e plantações verdes, alegrando as populações sertanejas. No tempo de seca, rios sem água, pouco verde nas matas, plantações secando. Mas tudo despertava curiosidade e comentários dos passageiros. A viagem era sempre saborosa.
Em Ingazeiras, pegava o cavalo, ou o burro e andava umas duas horas, até chegar ao sítio. Nas estradas, geralmente durante o dia, ouvia-se o canto dos passarinhos: o Bem-te-vi, que sempre dava as boas-vindas, dizendo com muita graça: “Bem te vi”; o galo de campina, pássaro de azas pretas, peito branco e cabeça vermelha, “que quando canta, muda de cor”, como disse o poeta; o canto das juritis, das rolinhas “Fogo apagou”, dos periquitos, aqueles pássaros pequeninos e verdes, que voam sempre em bando.
Nos tempos de chuvas, a gente saboreava as matas verdes, as plantações, os riachos, água limpa e o povo alegre por causa das chuvas. A gente sentia a alegria estampada nas pessoas que moravam na beira da estrada. Um “bom dia” tinha resposta gentil e repleta de contentamento. Aquela viagem de duas horas, com tanta coisa pela estrada, era emocionante, muito agradável.
Chegando próximo ao sítio, de uma chapada, avistava a casa, o engenho, o canavial, os animais pastando na bagaceira. Nesse momento, o meu coração pulava de emoção e alegria. Como dizia o meu irmão Emídio, “o coração ficava leve”. Ali, era o lugar onde nasci e vivi toda minha infância e pré-adolescência, fases da vida que ficam enraizadas na memória e no sentimento.
Em 1964, já com quatro anos de residência no Rio de Janeiro, voltei ao Ceará, à região do Cariri, onde fica Crato, e ao sertão, onde fica o sítio Ipueira, meu torrão natal. Quase tudo diferente. Em quatro anos, muita coisa mudara. Muitos amigos de infância já não estavam por lá. Vários de meus irmãos tinham saído para outras terras, em busca de melhores condições de vida. Meu pai e minha mãe resistiam, mantendo o sítio em atividade.
A viagem foi diferente. Já não mais de trem, cavalo ou burro. Fui de ônibus até à cidade de Barro e de lá, de jipe para o sítio Ipueira. A distância ficou mais curta, é verdade, mas a viagem ficou destituída de emoções. Com a velocidade do veículo, não mais a contemplação da paisagem, dos pássaros cantando, dos riachos correndo, do “bom dia” alegre dos moradores da beira da estrada.
A casa continuava a mesma: o alpendre, o vasto terreiro, a grande área ao lado, onde, outrora, a criançada divertia-se com brincadeiras de roda. Mas alguma coisa havia mudado. Não havia crianças, nem cantigas e brincadeiras de roda. Já havia rádio na sala. Outrora, não havia. Onde estavam as crianças, onde estava a cultura popular? Perguntei-me. Chegava o “progresso” e a tristeza no sertão.
O progresso, a comunicação estavam chegando. Tudo bem. Os avanços são necessários. Mas, uma coisa não estava bem: a ausência dos valores culturais; o sumiço da tradição, da cultura do povo. O progresso só tem sentido se preservar os costumes, fortalecer a cultura e tradição populares. Se não for assim, não é progresso.
Eu já sentia o início de decadência social e cultural, naquele momento em que se iniciava a maldita ditadura militar, que duraria vinte e um anos. Quanto estrago causou a ditadura! Um país que não preserva sua cultura, sua História fica enfraquecido. Podemos ver o caos no Brasil de hoje: os políticos e a política desmoralizados, a educação, a cultura e a saúde decadentes, os valores sociais fragilizados, a violência se aprofundando, o povo oprimido e rendido, perdendo a dignidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário