RESGATAR OS VALORES DA NOSSA HISTÓRIA
Edmílson Martins
Rio, abril de 2021
Julho de 1964. O tempo estava nublado e frio no Rio de Janeiro. Em todo o país, também, o tempo político andava nublado e a temperatura morna, em consequência do golpe militar iniciado no dia 31 de março e completado no dia da mentira – 1º de abril, evidenciando que a chamada “Revolução Redentora” significava uma grande mentira.
Num certo dia daquele mês de julho, na agência do Banco do Brasil, na Tijuca, estava eu diante do inspetor da Comissão Geral de Inquérito que apurava a participação de funcionários do Banco do Brasil nas greves de bancários. A participação social e política dos bancários fora intensa nos anos anteriores ao golpe. Eu tinha feito um requerimento de férias, que precisava do “de acordo” do inspetor.
- O senhor participou da última greve de bancários, certo? – perguntou o inspetor (sisudo, autoritário e arrogante), com uma lista de nomes sobre a mesa.
- Certo – respondi.
- Mas o senhor, com menos de um ano de Banco do Brasil, já participando de greve?
- Sim, a greve era para todos os bancários, independente do tempo de trabalho.
- Mas a greve foi decretada pelos comunistas!
- A greve foi decretada pela categoria bancária, em assembleia com mais de 15 mil bancários – retruquei.
- O senhor foi induzido pelos comunistas?
- A minha participação foi consciente e espontânea. Questão de reivindicação e defesa de direitos trabalhistas.
- Por que, se os funcionários do Banco do Brasil já ganham bem? – indagou o inspetor – já em voz alta e tom autoritário.
- Por respeito a uma decisão da assembleia e porque entendia ser a greve justa – respondi.
- Mas a greve era política – falou o inspetor, repreensivo, como se política fosse crime.
- Para mim, a greve foi uma decisão extrema, motivada pela intransigência dos banqueiros, diante das justas reivindicações dos bancários.
O inspetor manuseou as folhas de papel, verificou alguns nomes sublinhados de vermelho e perguntou se eu conhecia alguns deles. Respondi que conhecia todos. Eram colegas do Banco do Brasil e sindicalistas.
Parou de fazer perguntas, anotou alguma coisa na lista de nomes, olhou para mim, denotando algum espanto e (talvez) simpatia e disse:
- Pode ir colega. Boas férias.
Despedi-me e saí da sala. No corredor, encontrei um colega, que me contou que ao ser interrogado pelo inspetor dissera que a sua participação nas greves teria sido para desestabilizar o Governo João Goulart, que servia ao comunismo. Havia mesmo um esquema para desestabilizar o governo, organizado pelo sistema capitalista. É triste saber que trabalhadores participaram daquela terrível manobra.
Quando voltei para a agência de Madureira, onde trabalhava, encontrei os colegas apreensivos, porque também tinham participado das greves.
- O que o inspetor quis saber? – indagavam uns.
- Houve alguma ameaça de punição? Indagavam outros.
O clima era de frustração. O medo tomava conta de todos (medo que até hoje reflete na sociedade). A ditadura se estabelecia, impondo a derrota, a frustração e o medo. Pela mentira, pela força bruta, pela covardia.
A mim e a outros companheiros que buscavam resistir ao golpe, muitos diziam, como na música “Ronda” de Paulo Vanzolini: “Desistam, essa busca é inútil.” Mas não desistíamos.
Foram 20 anos de resistência, enfrentamentos, vitórias e derrotas, com perseguições, prisões, torturas, mortes, “cenas de sangue” – não “em um bar da Avenida São João”, mas nos porões da ditadura.
Naqueles tempos de luta e resistência havia motivações e referências históricas vivas, que animavam toda a caminhada:
a resistência dos vietnamitas ao império americano; a revolução cubana, enfrentando heroicamente a ofensiva capitalista; o posicionamento da Igreja Católica, tendo à frente o papa João XXXIII, na defesa da justiça social; as figuras históricas, universais e combativas de Dom Helder Câmara, do pastor americano Martin Luther King, do “pequeno” grande general vietnamita Giap – a raposa das selvas -, do bravo Che Guevara, etc.
Como dizia a Encíclica Pacem in Terris , do papa João XXIII, Três fenômenos caracterizavam aquela época:
Primeiro, a gradual ascensão econômico-social das classes trabalhadoras.
Segundo, o ingresso da mulher na vida pública;
Terceiro, a proclamação da independência dos povos.
A consciência desses fenômenos animava as pessoas a lutarem por um mundo mais justo, com a participação social e política livre e democrática. Havia um despertar universal pela participação de todos na construção de um mundo melhor.
Entre nós permaneciam vivos o idealismo e combatividade de muitos companheiros sindicalistas, líderes populares, religiosos e políticos. Todos imbuídos do sentimento de participação na pluralidade e universalidade, tendo em vista a coexistência pacífica entre pessoas e povos de boa vontade.
Os ambiciosos do poder, do dinheiro e do lucro, impõem, hoje, uma “nova” ideologia, uma “nova” cultura. Substituem o “penso, logo sou” pelo “sinto, logo sou”, e pelo “consumo, logo existo”, que significa trocar os valores perenes pelos passageiros, pelo “aqui e agora”.
Significa substituir o pensamento, a reflexão pelo sensível corporal, pelo consumismo. Daí o desprezo pelos valores do passado, pelas figuras que plantaram as bases da nossa História.
Por isso, rompendo o esquema do capitalismo já ultraliberal, é preciso resgatar nossa memória, os valores da nossa História, necessários para animar o nosso povo na luta pela construção da sociedade livre e democrática.
Como disse o Papa Francisco na Carta Encíclica Fratelli tutti:
“Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa”.
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