ABUSO DE AUTORIDADE
Edmílson Martins de Oliveira
Maio/2024
Era o início dos anos 1950. Eu tinha, mais ou menos, treze anos de idade, quando ocorreu, no sítio Ipueira, no sertão do Ceará, lugar onde eu nasci, um fato marcante, que ficou guardado na minha memória.
Meu irmão Agostinho formara-se Técnico de Contabilidade na cidade de Crato. Meu pai ficou muito alegre e quis organizar uma festa para comemorar a formatura. Convidou muitos amigos da redondeza. Na festa, um forró, com grupo de sanfoneiros. Uma festa de arromba.
Entre os convidados, tinha um rapaz da família Malheiro, da cidade de Barro. Os pais dele eram compadres do meu pai. O rapaz se chamava José Malheiro, conhecido como criador de casos em festas populares.
Em determinado momento, lá pela meia noite, quando ele já tinha se excedido em bebidas, começou a fazer provocações. Alguém da festa não gostou e quis tomar satisfações. Aí começou a confusão. Muito bate-boca, correria e sacação de armas. Meu pai agiu rápido e conseguiu acalmar os ânimos.
Parecia que tudo estava resolvido. Mas não estava. No dia seguinte, o delegado da cidade de Barro soube do ocorrido na festa e quis prender o José Malheiro e intimar meu pai a comparecer à delegacia, para explicações, alegando que ele tinha que ter pedido licença à autoridade policial para organizar a festa.
Meu pai, homem pacato, de paz, recusou-se a comparecer à delegacia. Dizia: “tenho mais o que fazer. Não vou perder um dia de trabalho para atender a um delegado, com seu abuso de autoridade. Ele que venha aqui, se quiser informações”.
Meu pai sempre organizara festas, promovendo a cultura popular, contratando músicos, cantadores, violeiros e outros artistas populares. Nunca houvera problemas. Nessa festa, houve um probleminha, logo resolvido. Nunca houvera aquilo no sertão: pedir licença para fazer uma festa. O delegado, por implicâncias com os Malheiros, quis envolver meu pai.
Meu pai recusou-se veementemente a comparecer à delegacia. O delegado não gostou e quis ir prendê-lo. Quase houve um confronto, com consequências desastrosas, não fosse a ação imediata do meu irmão mais velho, Joaquim, que convenceu o delegado a não realizar o seu intento. Disse Joaquim ao delegado: “não vá, não. Eu conheço meu pai. Ele não vai se entregar. Pode haver uma tragédia. Evite isso”. Com muita insistência, o delegado desistiu e tudo ficou bem.
Outro fato interessante ocorreu comigo e meu primo Heron(de saudosa memória) na cidade de Crato. Estávamos em frente à escola onde estudávamos, à noite. Tínhamos uns treze anos. Um amigo nosso começou uma briga com um colega. Eu e Heron fomos apartar a briga. Nessa peleja, um feriu o outro na cabeça, com uma pedra. O diretor da escola segurou os quatro. Ao invés de conversar, chamar a família, chamou o delegado.
Era um coronel da polícia. Um homem sisudo, grosseiro e mal encarado. Dava medo. Pegou os quatro meninos e foi procurar o juiz da cidade, para saber o que fazer. Chegamos à casa do juiz quase meia noite. O juiz acordou e, de pijama, abriu a porta para atender o delegado. Ouvindo-o, disse: “A essa hora da noite, o senhor vem com quatro crianças, por causa de uma briga entre eles! Leve os meninos pra casa. Eles já deviam estar dormindo. E se dirigiu aos quatro, dizendo, carinhosamente: vão para casa e não briguem mais.
O delegado, com seu abuso de poder, ficou com cara de tacho. Voltou conosco pra escola e contou ao diretor a bronca que levara do juiz. O diretor também ficou com cara de tacho. Nós, os quatro, já solidários, dizíamos baixinho: “bem feito. Levaram uma bronca do juiz”. Louvamos o juiz, justo e sensível, e condenamos veementemente o delegado e o diretor da escola, pela incompetência e abuso de poder.
Hoje, após mais de setenta anos, o mundo está em pé de guerra, a violência tomou conta da humanidade, o planeta está sendo destruído. A sociedade, a cada dia mais descrente, sente-se incapaz de resolver seus problemas. Por isso, se omite, baixa a cabeça, deixa-se dominar pelos carrascos. E, cooptada pelos sistemas perversos, corrompidos e trágicos dos dominadores, acaba contribuindo para sua autodestruição.
A incompetência, o autoritarismo, a cegueira do poder e da ganância estão causando grandes tragédias e destruindo o planeta e seus habitantes. Aprofundou-se o espírito autoritário do diretor e dos delegados. Em vez de investimentos na educação, na cultura, na sociedade democrática, no diálogo, na compreensão, preferem investimentos em armamentos, nas forças policiais, na promoção de guerras fratricidas.
Aqueles quatro meninos reagiram, solidarizando-se com o juiz, quando este repreendeu, com veemência, o delegado e o diretor, por causa do gesto autoritário e impensado. E o recado do juiz foi o seguinte: “Os senhores deviam se preocupar com a educação dessas crianças, dialogando, ensinando, compreendendo-os, e não tentar arrumar algum jeito de puni-los”.
Onde
precisa haver conversas, medidas preventivas, vontade política para resolver
problemas, como no caso do meu irmão, junto ao delegado que queria prender meu pai, só tem havido
intransigência, indiferença, egoísmo, má vontade e uso da força. Naquele tempo,
o coronelismo, o “sabe com quem está falando?”; hoje o hiper individualismo, criado
pelo perverso capitalismo, que, com o uso da força e das armas, produz
tragédias pelo mundo inteiro.
Basta, chega de tragédias, o povo tem que acordar. E, como os meninos, se solidarizar em torno do juiz justo e humano, contra esse atual e terrível estado de coisas que não deixa ninguém viver sossegado. A unidade na luta para tornarmos realidade o nosso sonho de um mundo humano, fraterno e justo é necessária e urgente.
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