PELAS ESTRADAS DA VIDA
Edmílson Martins de Oliveira
Janeiro/2024
Um dia, chegou a toda a redondeza uma notícia triste. Todos ficaram muito abalados. Meu primo Antônio Domingos, que morava no sítio Riacho do Meio, tivera a perna esmagada pelas moendas do engenho de fabricação de rapadura. Ele era o maquinista da máquina que fazia funcionar as moendas, que trituravam as canas. Num dado momento, por um descuido, em vez das canas, foi a sua perna. Teve que ser amputada.
Ele era um homem do trabalho. Não podia ficar parado. Resolveu então aprender o ofício de sapateiro, que tem seu dia comemorado em 25 de outubro, dia dos santos Crispim e Crispiniano, padroeiros dos sapateiros. Conta-se que esses dois irmãos foram perseguidos e mortos pelo imperador romano Diocleciano, nos anos 280, porque eram cristãos. Durante o dia, pregavam o cristianismo e durante à noite fabricavam sapatos para sobreviverem. Aliás, os sapateiros tiveram dinâmica participação no movimento sindical brasileiro, principalmente, no início do Século XX, talvez, por influência da história dos dois santos mártires.
Pois bem, Antônio Domingos, homem simples, trabalhador incansável, para sobreviver e sustentar a família, não esmoreceu com o esmagamento da perna. Adquiriu a profissão de sapateiro. A sua esposa cuidava da casa e dos filhos e ele consertava e fazia sapatos, chinelos, sandálias, etc.
Passou a atender às demandas das famílias de diversos lugares próximos do sítio onde morava. Havia sempre muitas encomendas e para ele muito trabalho. As pessoas vinham de lugares próximos e distantes para encomendar, principalmente, chinelos, sandálias. Ele atendia a todos com muita atenção.
Muitas vezes, eu fui à sua casa para buscar sandálias que meu pai encomendava para mim e meus irmãos. Gastava mais ou menos uma hora, a cavalo ou de burro. Eu gostava muito de ir ao Riacho do Meio. Era uma viagem pitoresca, para mim, cheia de novidades.
Viajava por caminhos solitários. Quase não encontrava gente. Saía de casa, geralmente, de manhã, passava por um lugar chamado “Areias”, onde havia muito mato verde e cantar de passarinhos. Mas passava por ali meio assustado, porque diziam que por aquele lugar, de vez em quando, passava uma cobra gigante, que saía do açude do “Chico”, onde morava uma tia minha, em direção a outro açude, que ficava no “Deserto”, onde morava outra tia.
Depois desse trecho assustador, tudo era maravilha. Passava pelo Sítio Santo Antônio, onde havia um amplo canavial e engenho de fabricação de rapadura. Caminhava mais uma meia hora e chegava ao Riacho do Meio, próximo da cidade de Barro-CE. Era um lugar simpático. Muito verde, um açude grande, vasta plantação de cana e o engenho, onde meu primo fora acidentado. Antes de chegar à casa dele, passava pela casa de um tio e pela Casa Grande, onde morava o proprietário do sítio.
Chegava na hora do almoço. Almoçava comida saborosa feita pela sua esposa e, depois, ficava observando o Antônio trabalhar na confecção das sandálias. Com uma pequena faca bem afiada, cortava o couro curtido, em pequenos pedaços para o feitio das sandálias, ou chinelos. Usando uma forma, martelo, cola e pregos, ele, com certa rapidez, deixava os calçados prontos.
Observando o interessante e detalhado trabalho de sapateiro, esperava a conclusão das encomendas feitas por meu pai. Aproveitava para experimentar as minhas sandálias, conhecidas por “alpercatas”). Após a conclusão do trabalho, pegava as encomendas, despedia-me dele e da esposa, agradecia por tudo, montava no burro, ou cavalo e partia de volta para casa, para chegar antes do escurecer. Viajar de noite era desagradável. As noites no sertão eram temerosas, por causa das histórias de assombração.
A última vez que vi meu primo Antônio Domingos foi em 1995, em Fortaleza, quando fui visitar minha mãe, com 90 anos. Estava ele, já usando perna mecânica, andando com certa dificuldade, mas com a mesma simpatia de outrora. Estava morando em Fortaleza e ainda trabalhando como sapateiro. Aproveitou o ensejo e mandou, por mim, umas sandálias para Maria José, demonstrando gratidão por ela tê-lo acolhido em nossa casa, com delicadeza, quando esteve no Rio de Janeiro em 1967. Aqui esteve para receber uma perna mecânica ofertada pelo programa da Dercy Gonçalves, na TV Rio.
Essa história é mais uma das inúmeras lembranças engavetadas em minha memória. O viver no sertão, longe das correrias das grandes cidades, era sereno e observador. A gente podia se concentrar convivendo com a natureza. Aprendia-se muito com os caminhos, as árvores, as aves, os animais, os regatos, o céu, as estrelas. Aprendia-se com o voar livre e cantos dos passarinhos. O viver simples e a interrelação com a natureza revelam o verdadeiro sentido da vida humana. Daí a riqueza das histórias dos habitantes do sertão.
Meu primo Antônio Domingos era um daqueles cidadãos serenos, de bem com a vida. Passou por situações difíceis, momentos trágicos, desalentadores, mas nunca perdeu a coragem. Enfrentou as intempéries da vida com muita força e esperança, justificando a afirmação do poeta, que disse: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Coloco o Antônio Domingos, sem medo de errar, entre a multidão de heróis anônimos do sertão. Aqueles que, apesar das desigualdades sociais e dos sistemas políticos e econômicos perversos, contribuíram, com seu trabalho e sua garra, para a construção do nosso país.
Graças a Deus, apesar de ter vivido apenas 16 anos no sertão profundo, guardei, no coração e na mente, a cultura, a grandeza e as histórias dos sertanejos. E registro tudo com muita alegria e paixão. Parafraseando o beato Antônio Conselheiro, as cidades grandes deviam virar sertão, para que, segundo o poeta Euclides da Cunha, as pessoas não tenham ”o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário