O SAPATO DE HUMPHREY BOGART
Edmílson Martins de Oliveira
Janeiro/2024
Mantendo a minha mania de leituras, reli o livro de contos, crônicas e lembranças de Marcello Cerqueira. Marcello é contista, cronista, poeta, advogado, professor, político e, fundamentalmente, sensível humanista. Defendeu mais de mil perseguidos políticos. Tem vários livros publicados.
Eu o conheci nas eleições parlamentares de 1978. Ele candidato a deputado federal e eu candidato a deputado estadual. Estávamos filiados ao então MDB. Militávamos no Grupo dos Autênticos, que lutava pelas liberdades democráticas, em oposição ao regime militar, que dominava nosso país. Nessa luta de resistência, tornamo-nos companheiros fraternos e bons amigos.
Marcello, além de escritor, hábil advogado e competente político, é um sábio pensador. Quando escreveu a apresentação do meu primeiro livro de memórias “Bancários: Anos de Resistência” , vaticinou: “A autobiografia é um gênero literário que, certamente, interessa à História. Marca o sentido de uma vida. Revela vocações”. A partir daí, escrevi mais três livros: “Removendo Pedras”(memórias),“Conversa de Papel” (crônicas) e “O livro dos Cordéis”(poemas).
Voltando ao livro do Marcello, os contos, crônicas e lembranças são saborosos. Escritos em linguagem simples, coloquial e também literária. Os textos, bem humorados, revelam drama, história, memória e denunciam as perseguições e atrocidades da ditadura militar. Os fatos ocorrem naqueles momentos sombrios e violentos da repressão às liberdades. São uma mistura de ficção e realidade.
Mas eu quero me referir ao conto “O sapato de Humphrey Bogart”, que intitula o livro e está publicado no livro de memórias do autor ”Fragmentos de Vida.” O texto é ao mesmo tempo sério, grave e jocoso. Os fatos desenvolvem-se numa rua da cidade de São Paulo, local em que havia um “ponto”, onde dois militantes clandestinos do PCB atuavam , recebendo e passando mensagens.
Em frente ao “ponto”, havia uma sapataria e na vitrine um sapato igual ao que Humphrey Bogart usou no famoso filme Casablanca. O personagem chamado José Raimundo era real. Eu o conheci na luta de resistência à ditadura. Ele era vidrado no filme. Tinha visto várias vezes, conhecia todos os detalhes dos personagens. Viu o sapato e queria porque queria adquiri-lo. Mas, vivia um drama. Como iria usar um sapato tão caro, sendo um revolucionário, que lutava contra o consumismo capitalista? Não, não podia trair os princípios.
Até que um dia, o seu companheiro de ponto, chamado Azedinho, depois de muita conversa, convenceu-o a comprar o sapato. Não haveria problema nenhum. O zé, ainda que fiel aos princípios, cedeu às argumentações do Azedinho e adquiriu o sapato. E bem no momento em que seu companheiro estava sendo preso e torturado pela polícia.
Dias depois, o Zé também seria preso, ficando na mesma prisão onde se encontrava o Azedinho, que nada falou sobre o que queria saber a polícia. Zé também nada falou, mesmo sofrendo todo tipo de tortura. “Sequer informou seu verdadeiro nome. Só falava o nome que inventara: “me chamo Rick Casablanca”. E mais não disse”
Um dia, o Azedinho saindo da prisão, levado para depor na Auditoria Militar, cruzou com uma turma de presos ainda encapuzados. Não reconheceu ninguém. Mas “no fim da fila reconheceu os sapatos do último preso e murmurou entre dentes: “Oi Zé, deixa comigo.” Zé Raimundo respondeu: “Zé não: Rick Casablanca”.
No final do conto, Marcello, que era advogado de defesa do Zé Raimundo, conta que fora visitá-lo na prisão. Após ouvir as notícias sobre os últimos acontecimentos e sobre a família, ele, já calmo, pergunta, no final da visita: - Tem algum cinema levando Casablanca?
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