ESTRADAS DA ESPEREANÇA
Edmílson Martins de Oliveira
Setembro/2023
Era o final da década de 1940. Eu tinha onze anos de idade. Acabara de ser alfabetizado pelo meu irmão José, o mais velho dos dezessete irmãos, que tempos antes fora alfabetizado pelo tio Joaquim, irmão de meu pai. Na família era assim: os mais velhos passavam aos mais novos as lições aprendidas.
Eu, alfabetizado, tinha muita vontade de continuar estudando. Mas lá no sertão não havia escola e as cidades onde havia eram muito distantes. Então eu tentava desenvolver os estudos, lendo, mesmo com dificuldade, histórias em folhetos de cordel, comprados por meu pai nas feiras da cidade. Ele valorizava muito a arte popular, a ponto de sempre convidar para apresentações violeiros, repentistas, sanfoneiros etc.
Além de ler os cordéis, copiava num caderno os textos, para melhorar a caligrafia e guardar na memória as histórias que lia. Exercitava, também, o estudo da tabuada, para aprender as quatro operações fundamentais. Naquele tempo, decorava-se a tabuada, cantando. Foi um aprendizado tão forte, que nunca mais esqueci.
Meu pai construíra um engenho, com moendas de madeira, puxado a bois, para moer as canas para a fabricação de rapadura. Diariamente, acordando de madrugada, eu retirava os bagaços e espalhava na bagaceira para secar. Os bagaços secos eram utilizados na fornalha, onde a garapa era preparada para o fabrico da rapadura.
Certo dia, eu estava lendo e escrevendo, enquanto o bagaço era acumulado para a retirada, quando o senhor José Sebastião, o tangedor de bois, vendo que eu estava sempre lendo, perguntou: Você gosta de estudar? Respondi que sim. Ele então, como um anjo reto, desses que vivem na claridade, ao contrário do anjo torto do Carlos Drummond de Andrade, me falou: Onde eu moro, no sítio Carnaúba, tem uma escolinha. Meus filhos estudam lá. Você quer ir pra lá? Animado, respondi que sim.
Meu pai, homem dedicado à agricultura, achava que os filhos também deviam ter essa dedicação. Por outro lado, não podia manter os filhos na cidade para estudar. Então, em primeiro lugar recorri à minha mãe, outro anjo da luz, que, com aquele sentimento e intuição fortes das mães, me disse com muita ternura: Vá, meu filho, que Deus o acompanhe”. – E o pai? – perguntei. – O pai deixa comigo – respondeu ela.
Acabou a moagem no mês de setembro. Em outubro, fui pra casa do anjo José Sebastião e continuei os estudos numa escolinha formal, organizada por uma moça, filha do administrador do sítio. Ela reunia crianças e jovens do lugar para alfabetização, e o fazia como prestação de serviço à comunidade, sem nada cobrar.
Depois de uns quatro meses, meu irmão Agostinho, o primeiro a sair da roça para estudar, indo passar uns dias de férias no sítio Ipueira, perguntou a minha mãe por mim. Ela disse: Ele vivia aqui, lendo livretos de cordel, rabiscando papéis, aprendendo a escrever, decorando tabuada. Pediu pra ir para a casa do seu José Sebastião, que o convidou, para estudar. Aí falou o Agostinho: Posso levá-lo para Crato. Lá ele poderá estudar. Meus pais deixaram. Eu fui.
Ao contrário do anjo torto, daqueles que vivem na sombra, do Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade, só me apareceram anjos que viviam na claridade. Anjos que não me mandavam ser “gauche” na vida, isto é, canhestro, inadequado, desajustado. Só me apareceram anjos que me diziam: vá, Edmílson, você é capaz, você pode superar a dura realidade, seu coração é mais vasto que o mundo.
No mês de fevereiro de 1950, viajei para o Crato. Saí de casa de madrugada pelos caminhos da Esperança. Andei umas duas horas pelas estradas escuras e pedregosas, até chegar ao lugarejo chamado Ingazeiras, onde passava o trem com destino à cidade de Crato. Apesar do “chato do Querubim”, o anjo safado da canção do Chico Buarque, tentar entortar minha estrada, fui até o fim.
Pelos caminhos, fui pensando nos meus irmãos que tinham saído de casa para outras terras, levados pela esperança de alcançar uma vida melhor. A esperança, esse motor que impulsiona o caminhar para frente. Eu, saía em busca de aprendizado, como tinham saído meus irmãos. Aprender é uma característica que nasce com o ser humano.
Pelos caminhos escuros, passando em frente às casas, escutava os cachorros, que me cumprimentavam latindo, dizendo: uau! uau!, uau!, que significa beleza, vá em frente, amigo. Ao raiar do dia, escutava o canto do galo, que me dizia: viva! Repetindo o que há dois mil anos anunciou no nascimento da Esperança, ao dizer: “Cristo nasceu!”.
Já dia claro, fui ouvindo o canto dos passarinhos: da rolinha que cantava “Fogo apagou!”; do Bem-te-vi, observador e alegre, que sempre me dizia: bem te vi, denotando que acompanhava a minha reflexão; dos currupacos em bando, com sua roupagem verde-esperança, fazendo algazarra; do sabiá mavioso, que espalhava ternura e encanto. Enfim, eu caminhava ao som de uma sinfonia. As aves, os animais, em festa, se solidarizavam com minha busca intensa e teimosa.
Hoje, continuando a caminhada pelas estradas tortuosas, com anjos tortos e querubins safados, a Esperança permanece viva. E com este texto quero dizer, parafraseando Drummond, que maior que o vasto mundo é a força do coração. E parafraseando Chico Buarque, sei bem pra onde mesmo que vou, por isso, vou até o fim. E, ainda parafraseando José de Alencar, romancista de Iracema, vou para além daquela serra que ainda azula no Horizonte...
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