terça-feira, 31 de agosto de 2021

O CANTADOR

 

     

                                 O CANTADOR

                                                        

                                            Edmílson Martins

                                            Agosto 2021

 

 

Ele era um menestrel, como aqueles que, na Europa da Idade Média, andavam de corte em corte, por lugares diversos, com seus instrumentos, cantando suas obras e interpretando obras de outros compositores. Eram artistas populares, que entretinham o povo com a sua arte.

 

Pois bem, tendo vivido minha infância e adolescência no sertão do Ceará, guardo na memória a figura do menestrel, que era chamado de “cantador”.  Andava de lugar em lugar, com sua viola, cantando músicas do cancioneiro popular.

 

Era jovem, sonhador, romântico, cabelos bem penteados, com brilhantina, conforme a moda da época. Bem educado, pedia abrigo em casa de pequenos sitiantes, para apresentar o seu trabalho.

 

Meu, pai, homem afeito à cultura de diversas plantações, valorizava também a cultura popular. Acolhia sempre artistas populares: contadores de histórias, repentistas, apresentadores de teatro de bonecos e, principalmente, artistas da música popular.

 

O cantador geralmente ficava entre dois e três dias. Durante o dia, organizava seu repertório, treinava sua cantoria e, à noite, cantava, no alpendre da nossa casa, para uma plateia, composta de crianças, jovens e adultos, que meu pai convidava  para ouvir o violeiro.

 

Naquele tempo, décadas de 1940/1950, ainda não havia,  no sertão, nem rádio nem televisão. O cantador funcionava como um propagador das composições populares.

 

Ainda me lembro de uma das canções que ele interpretava, uma marchinha de carnaval, popularizada pelo cantor Francisco Alves, o famoso “Rei da voz”:

“Maior é Deus no céu e nada mais
ai ai ai ai
A falsidade neste mundo é muito grande
Por isso ele na terra não volta mais.
Quem somos nós,
que vivemos entre o mal e o bem
Deus é maior, bem maior do que ninguém”.

 

O cantador, operário da arte, cantava, o povo, depois de um dia de trabalho duro na roça, ouvia, deliciava-se com a cantoria e ninguém o chamava de vagabundo. Todos o respeitavam e o valorizavam como artista e trabalhador, e até contribuíam com alguns trocados, valorizando a sua profissão.

 

Depois de três apresentações, o homem se despedia, agradecia e partia para outro lugar, feliz pela boa acolhida da população. Ele era, realmente, um sonhador, um romântico, que encarnava os sentimentos e os valores culturais do povo.

 

Hoje, nestes tempos duros, de consumismo, disputas, violências, intolerâncias e individualismos, está fazendo falta a figura do menestrel, artista do povo, que partilhava, com a sua cantoria, sonhos, sentimentos e bem-estar, valorizando a cultura popular.

 

Refiro-me a essas lembranças, não por saudosismo, mas para resgatar os valores da nossa História, a nossa memória cultural, que poderes tenebrosos tentam anular. A cultura de um povo, sua memória, seus valores preservados são fundamentais para a resistência à submissão.

 

Como disse um poeta e filósofo romano, depois da conquista da Grécia pelo império romano, com a força das armas:

“A Grécia vencida conquistou por sua vez o rude vencedor e levou a civilização ao bárbaro Lacio” (Horácio). Isso significa que a Grécia venceu os romanos, levando para Roma a sua cultura. Tal é a força dos valores culturais, que, por isso, devem ser sempre cultivados.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário