MEMÓRIA HISTÓRICA III
Edmílson Martins
Março 2021
(“Sem memória, nunca se
avança; não se evolui
sem
uma memória íntegra e luminosa”.
(Papa Francisco – Carta Encíclica Fratelli tutti)
A partir de 1969, com o recrudescimento da repressão
da ditadura, o nosso país ficou mais triste e o desânimo começava a tomar conta
do povo. “A minha gente hoje anda/Falando de lado/Olhando pro chão”, protestava
Chico Buarque, na música “Apesar de Você”.
Mas estavam ainda
presentes as repercussões da Carta Encíclica “Populorum Progresso”, do papa
Paulo VI, que pregava o desenvolvimento dos povos, com solidariedade, justiça e
paz. Dizendo que “Justiça é o novo nome da paz”, conclamava todas as pessoas de
boa vontade a lutarem por um mundo mais justo e fraterno.
Ecoava os versos da
música “Travessia”, de Mílton Nascimento: “Vou seguindo pela vida/Esquecendo de
você/Já não quero mais a morte/Tenho muito que viver/Vou querer amar de novo/E
se não der não vou sofrer/Já não sonho/Hoje eu faço/Com meu braço o meu viver”.
“Travessia” e “Apesar
de Você”, do Chico Buarque: “Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia”,
traziam, principalmente para a juventude, um certo estímulo e encorajamento
para a luta de resistência contra a ditadura e pela redemocratização do país.
O que fazer? Era a
pergunta. Sem liberdade de reunião, sem liberdade expressão, com todas as
instituições censuradas e controladas, tudo ficava difícil. A militância sabia
que precisava fazer alguma coisa e que, para isso, tinha que romper o cerco da
repressão.
Houve uma parcela de
militantes que não via outra saída, senão a luta clandestina e armada. A
experiência mostrou que aquilo foi um equívoco, que deu mais força à ditadura,
tornando ainda mais difícil a resistência pacífica.
Apesar das
dificuldades, os grupos militantes foram se rearticulando, com paciência, com
sensatez, buscando ocupar as brechas que a ditadura não pôde evitar. Reuniões
familiares, associações de moradores, Movimentos da Igreja Católica,
participação política através do então MDB, partido de oposição, que, apesar
das restrições, oferecia algum espaço de luta pelas liberdades democráticas.
Apesar do desmantelamento
dos movimentos populares, com violenta repressão, a militância foi se rearticulando
e reanimando o povo. A Igreja Católica contribuiu decisivamente para a
reconquista da democracia, ao incentivar a participação dos leigos nos
movimentos sociais, favorecendo os debates nos seus Movimentos internos, tendo
em vista a conscientização da sociedade.
Já em 1962, a Igreja Católica criara uma atividade, a
nível nacional, chamada Campanha da Fraternidade, que se tornara especial
manifestação de evangelização libertadora, provocando, ao mesmo tempo, a
renovação da vida da Igreja e a transformação da sociedade, a partir de
problemas específicos, tratados à luz do Projeto de Deus: a libertação da
humanidade.
A partir de 1973,
após a primeira fase da campanha, que tratava da renovação interna da Igreja,
começou a segunda fase. A Igreja preocupa-se com a realidade social do povo,
denunciando o pecado social e promovendo a justiça. E, na terceira fase, volta-se
para situações existenciais do povo brasileiro.
A partir daí, a cada
ano um tema social, debatido em todas as paróquias, Movimentos e Comunidades do
Brasil inteiro. A Igreja tornou-se então a protagonista principal da luta pela
redemocratização do país. Com esse movimento, pedagógico, didático, com
objetivos claros e bem fundamentados na leitura dos Evangelhos, a Igreja
contribuiu decisivamente para a evolução da participação popular nos destinos
do país.
Nas grandes cidades,
desenvolveram-se Movimentos populares, como associações de moradores de bairros
e favelas; Nas periferias das grandes cidades, no interior e no campo
desenvolveram-se as Comunidades Eclesiais de Base e o Movimento dos Sem Terra.
Os temas das Campanhas da Fraternidade eram debatidos em todas as paróquias, em
todo o país.
Esse amplo projeto de
debates e reflexões influenciou o Movimento dos trabalhadores, nos sindicatos,
os partidos políticos e a juventude. Crescia o amplo movimento de participação
popular, com forte reivindicação de mudanças, por uma sociedade democrática. Toda
essa movimentação, entre outros fatores sociais, enfraqueceu a ditadura,
forçando-a a mudar de rumo.
No campo da política
existiam dois partidos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido do governo
e MDB (Movimento Democrático Brasileiro), de oposição, onde se abrigava as
forças mais progressistas, aliadas ao povo. Mas dentro o MDB, havia dois
blocos: o que se alinhava ao governo e o bloco dos “autênticos”, que fazia
autêntica oposição ao sistema ditatorial.
Com o crescimento da
participação popular, crescia o partido de oposição, principalmente o grupo dos
“autênticos”. O MDB crescia e estava sufocando a ARENA. Isso assustou a
ditadura, que se enfraquecia cada vez mais.
Entre as
reivindicações de volta à democracia, estava a anistia geral aos perseguidos
políticos, muitos exilados no exterior. Isso resultou na restituição de
direitos políticos cassados pela ditadura. Muitos voltaram do exterior e,
juntamente com outros que aqui já residiam, retomaram as atividades políticas.
A ditadura, acuada e
orientada pelo poder econômico nacional e internacional, que a sustentavam,
resolveu negociar, aceitando a anistia e, astutamente, criando a pluralidade
partidária. Assim, dividiria a oposição, agasalhada no MDB, que era instrumento
de unidade das forças progressistas. Por ser mais uma medida golpista, alguns
setores da oposição achavam que não era o momento para o pluripartidarismo.
Foi uma jogada muito
bem arquitetada pelas forças que compõem o poder econômico, para continuarem no
poder. Assim, as forças de oposição foram assumindo o governo nas instâncias,
municipais, estaduais e federal, mas sem ter o poder, por causa das alianças,
em nome da governabilidade.
Isso, contraditoriamente,
resultou em retrocesso do movimento de organização popular. Ficou claro que
tudo foi negociado pela classe dominante com setores da oposição, supostamente
lideranças do povo. Essa armação das forças dominantes e rendição das chamadas
“forças progressistas” contribuíram, certamente, para a tragédia que estamos
vivendo hoje no Brasil.
Todas as forças de
oposição, reunidas no MDB, dividiram-se nos mais diversos partidos criados pela
armação do sistema dominante. Aconteceu a chamada abertura total. Todas as
correntes políticas, das mais moderadas às mais radicais, puderam fundar sua
agremiação partidária. Todas as correntes da esquerda marxista puderam formar
partidos. Isso desfez o pretexto dos golpistas de 1964, que implantaram a
ditadura, alegando a ameaça dos comunistas no Brasil.
Diante desses
acontecimentos, surgiu o PT (Partido dos Trabalhadores), que seria uma ideia
nova, que agasalharia os trabalhadores e trabalhadoras, que constituem a grande
maioria do povo brasileiro.
Mas da forma como foi
criado, muitos da militância popular, entre os quais, este que aqui escreve,
previam que o PT não daria certo. Os trabalhadores não participariam na sua
condução e seriam comandados por intelectuais, que se achavam os únicos capazes
de dirigir o povo trabalhador. Deu no que deu.
O partido (PT) fez
acordos com a classe dominante. Com alianças espúrias, contribuiu para
desarticular a organização popular em ascensão, cedeu às exigências de setores
corruptos do sistema neoliberal, embrenhando-se no esquema de corrupção. Isso
feriu profundamente o movimento de conscientização e organização do povo,
trazendo desilusões.
Foram cúmplices dessa
derrocada, provocada pelo sistema capitalista, todos os partidos, chamados de
esquerda, e instituições representativas do povo, que silenciaram diante desse
terrível esquema de dominação e corrupção, engendrado por um sistema que domina,
corrompendo pessoas e instituições.
Em 1964, as forças do poder econômico, para deter o
crescimento da conscientização e organização do povo, impôs, pela força bruta,
um sistema de repressão e controle da sociedade. E no final de 1979, o mesmo
poder econômico, numa jogada malandra e maquiavélica, também, para deter o
crescimento da participação popular, implantou o pluripartidarismo. A medida,
tinha, aparentemente, um cunho democrático, mas era uma armação para dividir a
oposição ao regime.
Esses dois fatos políticos, a meu ver, contribuíram
decisivamente para manter as forças detentoras do capital no poder. E quase
todas as forças progressistas caíram nesse canto das sereias e foram cooptadas,
tragadas pelas ondas perversas do mar profundo do capitalismo opressor.
Está aí o resultado.
O país no caos, governado por gente de baixo nível e incompetente. E isso não é
novo. A História está cheia de exemplos de derrocadas, por causa de rendição às
tramas de poderes destruidores. Até na Bíblia, vemos, por exemplo, a história
do rei Salomão, que caiu em desgraça, por causa de alianças espúrias e abandono
do verdadeiro caminho traçado por Deus.
Concluindo a terceira
parte dessas memórias históricas, quero deixar claro que são breves observações
sobre fatos políticos vistos e vividos. São pontos de vista pessoais, a partir
de experiências políticas e sociais, sem caráter científico e absoluto.
De qualquer forma,
dedico essas memórias às gerações que surgiram a partir de 1960. E a quem
duvidar do que estou contando, como o velho timbira do poema “I - Juca -
Pirama”, de Gonçalves Dias, digo prudente:
- MENINOS E MENINAS,
EU VI.