segunda-feira, 20 de dezembro de 2021


 

 

 

                           MINHA AVÓDRASTA

                                  Edmílson Martins

                                           Dezembro 2021

 Não conheci minha avó paterna, mas conheci minha avódrasta, madrastra de meu pai. “Das dores”. Era assim que todos a chamavam. Uma cabocla parecida com Iracema, a virgem dos lábios de mel, do romance de José de Alencar. Como Iracema, uma guerreira. Criou oito filhos com muito carinho sabedoria e bravura.

 Iracema pertencia à tribo da guerreira nação Tabajara, que habitara as matas do Ipu, Noroeste do Ceará. Minha avódrasta foi, talvez,  descendente da tribo dos Cariris, que habitaram o sul do Ceará. Os Cariris, bravos guerreiros, lutaram para expulsar os portugueses de suas terras, no final do Século XVII.

 Era uma mulher de luta,  que esbanjava serenidade e ternura. Como meu avô, sempre conselheira. Dinâmica, comunicativa, transmitia, nas conversas, ânimo e esperança. Apesar das dificuldades que enfrentava, nunca a vi desanimada. Inspirava respeito e consideração.

 Não sabia ler nem escrever, mas aprendeu a ler na escola da vida, com experiências e observações, os sentimentos humanos. Compreendia com facilidade os dramas e apreensões das pessoas. Era uma mestra da vida. Daí, o respeito e consideração que todos tinham por ela.

 Era parteira. Ajudou a nascer muitas crianças em toda a região onde morava. Eu e meus irmãos nascemos com a ajuda dela. Sempre disponível e solidária. Muitas vezes, pessoas vinham de longe e, de madrugada, procurá-la. Batiam na porta e falavam:

- Dona Das dores, minha mulher está em trabalho de parto, por favor, a senhora pode ajudá-la?

Ela prontamente se arrumava e partia, andando às vezes, uma ou duas horas a pé, para atender às necessidades da parturiente.

 Trabalhadora agrícola, fazia os trabalhos de parto, por altruísmo. nunca cobrava nada. As famílias, por gratidão, sempre a gratificavam. Como não tinham dinheiro, doavam gêneros alimentícios. Ela aceitava as ofertas, porque precisava. Ficou viúva e teve que criar sozinha os oito filhos.

Aliás, as parteiras, com seu autoconhecimento, principalmente no interior do nosso país, prestaram relevantes serviços à sociedade, suprindo as lamentáveis deficiências das políticas públicas em todos os campos, principalmente, no campo da saúde.

Eu e meus irmãos, como meus pais, tínhamos por ela muita estima. E ela nos tratava como netos, com todo carinho e ternura de avó. Era uma mulher fantástica, do grupo daquelas cujos valores elevam o ser humano.

 Mulher de fé, muito devota de Nossa Senhora das Dores, contava que, às vezes, via, no final da tarde, ao pôr do sol, à beira de um açude, uma senhora toda vestida de azul, muito bonita, que sempre acenava pra ela. Todos a ouviam e ninguém se atrevia a duvidar do que ela contava, tamanha era sua credibilidade.

 Guardo muita saudade da minha avódrasta. Ela inspirava confiança. Eu gostava muito de conversar com  ela. E aprendia muito com as suas experiências e com as histórias que contava. Ficava muito contente porque eu me dava muito com Francisco, seu filho e meu tio, mais ou menos da minha idade.

 Às vezes, me convidava para visitar famílias amigas e eu a acompanhava com muita satisfação e alegria. Eram léguas a pé e eu não me cansava. Grande era a satisfação de estar com ela.

 A última vez que a vi foi em 1959, um pouco antes de eu vir para o Rio de Janeiro. Esteve em Crato=CE para hospitalizar a filha Soledade, minha tia, que, curiosamente, faleceu de um parto em que ela atuou. Foi o único trabalho de parto em que ela não teve sucesso, porque havia necessidade de cesariana. E Foi a única vez que a vi triste.

 Partiu para a eternidade há muitos anos, quando eu ainda era jovem e já estava aqui no Rio de Janeiro. Senti muito a sua partida. Sem dúvida, está lá no Céu, certamente, me dando inspiração para escrever esta crônica. “Das dores”, minha avódrasta, está sempre viva em minha memória.

 Sua bênção, vó Das dores.

 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

MEU AVÔ

 

 

                                 MEU AVÔ

 

                                               Edmílson Martins

                                               Dezembro 2021

 

Ele se chamava José Martins, mas muito conhecido por José Bembém. Até mais ou menos os oito anos de idade, eu convivi com ele. Eu e meus irmãos o chamávamos de pai. Morava em casa bem próxima da nossa. Tinha oito filhos, seis mulheres e dois homens, com a segunda esposa. Há muitos anos antes de eu nascer, falecera sua primeira esposa, mãe de meu pai e minha avó. Eu e meus irmãos  considerávamos os tios e tias como se fossem irmãos e irmãs. Por isso, chamávamos o nosso avô de pai.

 

Era um homem calmo, espirituoso, terno, cheio de sabedoria. Muito admirado pela sua personalidade forte e pela sua generosidade. Seus gestos e comportamento impunham muito respeito. Tinha a fala mansa e ponderada. Todos o ouviam com atenção, quando ele falava. Uma personagem marcante, cuja memória permanece em minha vida.

 

Lembro-me de uma vez que um rapaz, por causa de uma brincadeira, jurou bater no Vicente, meu tio e seu filho ainda adolescente. Ele soube e foi tomar satisfação.

- Fulano, você vai bater no meu filho? – falou com voz forte, serena e admoestadora.

O rapaz, trêmulo, respondeu:

- Não, seu José, eu estava brincando e, sem graça, foi logo saindo.     

 

Muitas histórias rolavam em torno da figura dele. Meu pai contava que um dia ele promoveu um samba, festa dançante, em sua casa. Lá pelas onze horas da noite, um cidadão, já meio embriagado, foi tirar uma dama pra dançar e ela o recusou. O homem não gostou e quis criar encrenca, quando ela saiu dançando com outro. Meu avô, já deitado, ouviu o bafafá, levantou-se e foi ao salão, dizendo: “o samba está terminado, vão todos pra casa”. O encrenqueiro não gostou e protestou. O meu avô somente ordenou: “segurem esse cabra”. Vários homens logo tentaram segurá-lo e o cara fugiu desembestado.

 

Meu pai contava que certo dia, meu avô ia a cavalo pela estrada, quando encontrou o bando de Lampião, acampado, descansando. Dois cabras logo tomaram o cavalo dele. Ele, com coragem e firmeza, dirigiu-se a Lampião e falou:

- Capitão, eu sou pobre e este cavalo é o único que tenho e me serve como meio de transporte pelas estradas do sertão. Lampião chamou os cabras e disse:

- Devolvam o cavalo do velho.

 

Eu convivi pouco tempo com ele. Quando faleceu eu era ainda criança, mas me lembro bem do seu jeito de ser, das suas conversas, do seu temperamento suave, da sua sabedoria. Com a sua partida, ficaram vivos os seus feitos, a sua generosidade, a sua personalidade determinante, as histórias contadas sobre ele. Era sempre muito lembrado pelos seus contemporâneos.

 

“O velho” da música de Chico Buarque diz que “nada tem de novo pra deixar; que deixa a vida sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade”. Diz também que “sempre se escondeu, não se comprometeu”. “foi-se embora sem bagagem, não sabe pra que veio”.

 

Diferentemente, o meu avô, não se guardou, muito teve pra deixar, não foi indiferente, deixou amizades, não se escondeu, sempre se comprometeu. Foi-se embora com bagagem, foi agente ativo da História. Deixou memória. Construiu eternidades. Soube pra que veio. Por isso, hoje podemos lembrar e louvar a sua produtiva passagem por este planeta.