MEMÓRIA HISTÓRICA II
Edmílson Martins
Outubro/2020
(“Sem memória, nunca se avança; não se
evolui
sem uma memória íntegra e
luminosa”.
(Papa Francisco – Carta Encíclica Fratelli tutti)
No dia 1º de abril de 1964, consumou-se o golpe civil/militar no Brasil. As forças do capitalismo nacional e internacional derrubaram um governo legitimamente eleito pelo povo brasileiro.
Eu era bancário e ativista sindical. Entre 1960 e 1964, participara de várias greves de bancários no Rio de Janeiro. A partir dos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, que incentivavam a participação dos cristãos na luta pelas mudanças sociais, eu estava engajado no Movimento Sindical bancário.
As primeiras ações violentas da ditadura foram as intervenções nos sindicatos de trabalhadores, com perseguições e prisões de dirigentes e ativistas sindicais. Funcionários do Banco do Brasil e de outros bancos públicos foram os mais atingidos, com muitas demissões.
Como os trabalhadores e o povo em geral, vinham num processo crescente de participação social, através de suas Organizações representativas, houve as tentativas de resistência à ditadura.
Inicialmente, a ditadura tentou desmantelar as Organizações do povo, com perseguição, afastamento e prisão das suas lideranças. Não conseguiu totalmente. Os trabalhadores, estudantes, artistas, intelectuais, etc., buscaram a rearticulação, para continuar a luta pelas liberdades.
Os anos de 1964 a 1969 foram bem movimentados, com grande parcela da população tentando reorganizar-se para resistir à violenta repressão da ditadura. Fatos políticos como a resistência dos vietnamitas ao imperialismo americano; a Revolução Cubana; a rebelião dos negros americanos, liderados pelo pastor Martin Luther King Jr; a rebelião dos jovens, a partir da França; o Concílio Ecumênico Vaticano II, contribuíram decisivamente para o crescimento da movimentação social e política no Brasil.
Nesse período, rearticulava-se o Movimento Sindical, rearticulava-se o Movimento Estudantil. Intelectuais, artistas e amplos setores da Igreja Católica entravam na luta de resistência. Crescia um amplo movimento contra a ditadura, em favor das liberdades democráticas.
A chamada linha dura do regime, representada por setores das Forças Armadas, ficou incomodada com esse movimento de rearticulação do povo. Tramou nos bastidores e conseguiu dar o golpe dentro do golpe. Foi afastada a linha mais branda do regime, substituída pela linha dura, que iniciou o período de truculência.
Todo o Movimento em rearticulação foi desbaratado. Durante os cinco anos seguintes, a truculência foi mais perversa do que em 1964. O Movimento Estudantil foi estraçalhado, os sindicatos foram totalmente controlados, os intelectuais, artistas e Movimentos atuantes da Igreja Católica foram duramente reprimidos. Tudo com muitas prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de lideranças populares.
Foi nesse momento que surgiram os chamados “grupos revolucionários” clandestinos, como MR8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), ALN (Ação Libertadora Nacional), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), etc. Esses grupos estavam enxertados por jovens, oriundos do Movimento Estudantil, proibidos de participar da luta legal e democrática, através de suas instituições.
Esses grupos achavam que, através da luta armada, derrubariam a ditadura, influenciados pelo “Foquismo”, teoria revolucionária inspirada por Che Guevara, para enfraquecer o imperialismo, desenvolvida por Regis Debray, filósofo, jornalista e professor francês. No Brasil, essa teoria foi cantada pelo compositor e cantor Geraldo Vandré, com a composição “Pra não dizer que não falei de flores”. (“Vem, vamos embora que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora não espera acontecer”). Essa música tornou-se um hino da juventude brasileira, engajada na luta pelas liberdades.
Esses grupos, organizados e relativamente armados, partiram para sequestros de embaixadores, guerrilhas urbanas, com assaltos a bancos e guerrilha rural no Araguaia. Foram todos massacrados pelo forte poder armado da ditadura. Contavam com a adesão do povo. Não aconteceu.
Os sequestros de embaixadores produziram aspectos positivos, entre eles, a libertação de mais de 100 presos políticos, que estavam sendo torturados nos cárceres da ditadura. E até tiveram a simpatia do povo, mas somente a simpatia.
Ficou evidente que as ações desses grupos, embora bem intencionadas, foram uma aventura e contribuíram para tornar mais intensa e cruel a repressão do regime ditatorial, com prolongamento maior do tempo de autoritarismo e retrocesso social e político.
Já em 1964, fora a pressa das chamadas “vanguardas” que favorecera a implantação do golpe civil/militar. Na História, esse problema sempre ocorreu, quando não se teve paciência de acompanhar a caminhada do povo, que é sempre muito devagar. O povo tem o seu jeito de fazer a revolução, que acontece na sua longa trajetória, através da História.
A partir de 1969, o obscurantismo tomou conta do nosso país, com a violenta repressão da ditadura. Continuava aí, com mais perversidade, o processo de destruição dos ideais de toda uma geração de jovens, que sonhavam com a liberdade, e do desejo de vida melhor de todo o povo brasileiro.
Esse obscurantismo foi bastante registrado nas músicas de Chico Buarque de Holanda: “Apesar de você” (Vou cobrar com juros, juro/Todo esse amor reprimido/Esse grito contido/Este samba no escuro; “Roda Viva” (A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda viva//, E carrega o destino pra lá); “Cálice” (Pai, afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue). E nas músicas de Milton Nascimento, como “Travessia” (Quando você foi embora/Fez-se noite em meu viver) ou (Sonho feito de brisa
Vento vem terminar).
A partir daí, os militantes mais aguerridos da ação social e política, entre os quais este narrador, sem perderem o ânimo e a esperança, procuraram construir novas formas de luta, para continuar o processo de conscientização e organização do povo, rumo à construção da sociedade democrática e livre.
Esse assunto será desenvolvido no próximo capítulo destas “Memórias Históricas”.
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