sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

O AÇUDE GRAANDE















O AÇUDE GRANDE

                     Edmílson Martins
                     Janeiro/2020


Continuando a desengavetar minhas memórias, lembrei-me dos banhos aos domingos no Açude Grande do sítio Ipueira, no sertão do Ceará, lugar onde nasci e do qual guardo ternas recordações.

O Açude Grande era assim chamado porque era o maior da redondeza, Acumulava milhões de litros de água e resistia às secas frequentes, somente secando quando a estiagem era muito longa.

Era nesse açude que, aos domingos, meninos, meninas, rapazes e moças reuniam-se para tomar banho, nadar e brincar. Era o piscinão sertanejo e área de lazer da população.

Primeiro iam às mulheres e depois os homens. Naquele tempo, décadas de 1940/1950, ainda não existia por lá o short de banho e o maiô. Todos tomavam banho sem roupa.

Os homens davam um tempo para que as mulheres tomassem seu banho, nadassem e brincassem. Depois, iam e ficavam atrás da alta parede do açude. E gritavam: “Já acabaram”?  Elas respondiam: “Ainda não”!  Os homens esperavam mais algum tempo e gritavam outra vez: “Já terminaram”? Elas respondiam: “Ainda não, estamos terminando”!  Até que terminavam e gritavam de lá: “terminamos, podem vir”. E se retiravam, enquanto os homens começavam o seu lazer.

As mulheres voltavam para casa e, como sempre, tratavam de preparar o almoço. Naquele tempo era assim: geralmente, as mulheres cuidavam das coisas de casa e os homens trabalhavam na roça o dia todo. Então era normal que aos domingos as mulheres preparassem as refeições.

Ficávamos no açude, nadando, brincando, tagarelando, num gostoso convívio de lazer e alegria, que durava algumas horas, até a hora do almoço, quando voltávamos para casa, limpos, cansados e famintos.

Conversando com alguns sobrinhos, filhos do meu irmão Emídio (de saudosa memória), que conservam o pequeno sítio, onde eu e meus dezoito irmãos nascemos, perguntei sobre os banhos no Açude Grande,
eles me responderam: “Tio, ninguém mais toma banho lá não. Agora, com água encanada, banheiro e chuveiro em casa, todo mundo toma banho de chuveiro”.

Lamentei e fiquei triste, ao lembrar que os banhos no Açude Grande, aos domingos, era um motivo de reunião de irmãos, primos e outros amigos. Era momento de lazer em conjunto, de longas conversas e reflexões.

Com os avanços da tecnologia, o mundo mudou, as pessoas mudaram, as relações mudaram, as condições de vida mudaram. Mas fica no ar a pergunta: será que, no conjunto, o mundo mudou pra melhor?  As pessoas
Teoricamente melhoraram de vida. Mas, são mais, ou menos felizes?


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

LAVANDO ROUPAS NO OLHO D`ÁGUA





LAVANDO ROUPAS NO OLHO D`ÁGUA
                 
                Edmílson Martins
               Janeiro de 2020


Eu tinha, mais ou menos, uns três anos de idade e o meu irmão Emídio, mais ou menos, uns quatro anos, quando ocorreram os fatos que vou relatar.

Lembro-me como se fosse hoje. Apesar dos meus 81 anos, tudo ficou marcado na minha memória. Talvez, por ser tempo de criança, quando a cabeça não se envolve com muitas coisas. Só com o essencial, com o necessário para viver feliz.

Meu pai já tinha o sítio Ipueira. Mas recebeu a proposta de administrar o sítio Carnaúba, próximo da cidade de Barro - Ceará. Para lá foi toda a família. Eu ainda era bebê.

Como no sítio Carnaúba a água era rara, minhas irmãs, Filomena e Agnela, toda semana, juntavam toda a roupa suja e iam lavá-la num lugar chamado Olho D`água, onde havia uma nascente de água límpida.

Eu e meu irmão Emídio sempre íamos com elas, montados num jumento, que também transportava as trouxas de roupa. Andávamos mais ou menos uma hora para chegarmos ao local.

Era uma fonte de água cristalina, coisa rara no sertão nordestino. Ali se formavam uma correnteza e uma pequena represa. Dos lados, árvores verdes, enfolharadas, com passarinhos cantando e de vez em quando bebericando na água da fonte. Também, na beira da água, observávamos aquele pássaro de peito branco e asas pretas, chamado Lavadeira, “a que lava a roupa de Nosso Senhor”. E na frente, um amplo terreno, cheio de gramas, onde as roupas eram estendidas para quarar.

Enquanto eu e meu irmão brincávamos na água, minhas irmãs lavavam as roupas, num ritual bem coordenado. Primeiro botavam cada peça de roupa na água limpa, esfregando para tirar o grosso da sujeira e repetiam a ação. Depois passavam o sabão, esfregavam, esfregavam, esfregavam, e botavam para quarar na grama.

Depois de algum tempo, recolhiam a roupa, molhavam, passavam sabão, batiam várias vezes cada peça numa pedra, lavavam outra vez com água limpa, passavam sabão, lavavam na água limpa e torciam até sair toda a água. Repetiam esse ritual e, a roupa, já limpa, era colocada no varal para secar.

O escritor Graciliano Ramos, num texto intitulado “As lavadeiras de Alagoas”, numa bela comparação, aconselhava quem queria escrever, ensinando assim:
“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer”, etc.

Utilizei esse processo desenvolvido pelas lavadeiras, muito bem lembrado por Graciliano Ramos, para produzir este texto, escrevendo-o, reescrevendo-o, enxugando-o, algumas vezes. E isso parece o processo de construção da vida, que é cheia de erros e acertos, quedas e reerguimentos derrotas e vitórias.

Durante todo esse processo de lavação, eu e meu irmão brincávamos, tomávamos banho, corríamos, brincando com os passarinhos e até ajudávamos na hora de recolher a roupa do quarador.

No final da tarde, toda a roupa limpa era recolhida, colocada em trouxas, colocadas no jumento e levadas para casa. Depois de um dia de lazer e trabalho, voltávamos muito contentes.

Essa foi uma das experiências marcantes na minha vida de criança. Tão marcante que jamais a esqueci. Ir para a nascente do Olho D`água, montado num jumento, cruzando as estradas, vendo coisas diferentes, era, para mim, um acontecimento emocionante, saboroso. As crianças sentem-se felizes com coisas simples e saudáveis. A gente devia ser sempre criança.

O GRÊMIO ESCOLAR





                 O GRÊMIO ESCOLAR

                                Edmílson Martins
                                Janeiro de 2020                       

Era o ano de 1951. Eu tinha doze anos e alguns meses de idade, quando entrei para o Grupo Escolar de Crato-Ce, no Segundo Ano Primário.

No ano anterior, 1950, eu saíra da roça, no sítio Ipueira, para estudar em Crato, levado pelo meu irmão Agostinho, que já se encontrava na cidade há alguns anos.

Após estudar durante um ano no Pré-primário, num cursinho dirigido por Dona Antônia, em sua residência. Ela preparava crianças entre dez e doze anos, que nunca tinham estudado em uma escola.

Foi minha primeira professora. Com ela não tive dificuldades, porque já tinha sido alfabetizado pelo meu irmão José (de saudosa memória). Ainda me lembro dela. Era uma senhora mulata, de olhos grandes e atenciosos, lábios grossos, cabelos encaracolados. Muito simpática e comunicativa. Excelente educadora. Ainda me lembro das estórias que ela contava, desenhando os personagens no quadro negro.

No final do curso, ela me encaminhou para o Grupo Escolar, sugerindo a minha matrícula no Segundo Ano Primário, sustentando que eu estaria preparado para ingressar no Segundo Ano.

Quando cheguei à sala de aula, uma professorinha deu-me as boas vindas e encaminhando-me ao quadro negro, passou alguns exercícios de matemática e língua Portuguesa. Acertei tudo que ela propôs, com facilidade. Então, ela me encaminhou para o Segundo Ano forte. Havia o Segundo Ano fraco e o Segundo Ano forte.

Eu era o mais velho da turma. Tinha entre doze e treze anos e a meninada tinha entre nove e dez anos. Quase todos filhos da classe média cratense, que tinham estudos regulares, desde o Pé- Primário.

Talvez, por causa da idade, com mais experiência, ou pela grande vontade de estudar, eu me destacava na turma. A nota máxima, naquele tempo era doze. Eu sempre conseguia a máxima, em todas as matérias.

A professora chamava-se dona Sila. Lembro-me da figura e do jeito dela: baixinha, gordinha, muito dinâmica, comunicativa e simpática. Tinha o respeito e admiração da criançada.

Um dia, no final do primeiro semestre, ela reuniu toda a turma, fora da sala de aula, no pátio da escola e propôs a criação de um Grêmio. Primeiro, explicou o que era um grêmio, suas funções, seus objetivos.

Dona Sila era uma verdadeira educadora. Sentia o dever de transmitir à criançada uma educação verdadeira, completa, com iniciativas que levassem os alunos a participar da construção de sua cidadania.

Naquele tempo, havia movimentos estudantis atuantes, com muitos grêmios escolares e outros grupos organizados. Em Crato existia a União dos Estudantes de Crato (UEC), muito atuante na região, em defesa da organização dos estudantes.

Pois bem, dona Sila propôs à turma a criação do grêmio e me indicou para presidente. Talvez, porque eu era o mais velho da turma e tinha as melhores notas. Foi a minha primeira experiência de participação em movimento organizado. Ali comecei, para nunca mais parar. Viva dona Sila.

Para secretária, indicou uma menina, de cujo nome não me lembro. Só me lembro de que ela cantava e, convidada, cantou a música “Que será”, grande sucesso na voz de Dalva de Oliveira. Ela cantou a música toda, com muito desembaraço e segurança. Sempre que ouço a música, lembro-me daquele momento.

Só fiquei no Grupo Escolar seis meses. No segundo semestre, passei a estudar à noite, no Quarto Ano Primário, numa escola, também municipal. Lá, eu era o mais novo da turma. Os outros eram todos adultos, com mais de dezoito anos.
                                 
Os seis meses no Grupo Escolar, deixaram marcas profundas em minha memória, principalmente, a iniciativa da Dona Sila, com a criação do grêmio. A breve experiência no grêmio foi o pontapé inicial da minha participação, até hoje, nos movimentos sociais.

Hoje, falta no processo educativo atividades como aquelas, incentivadas por Dona Sila, que tinha a preocupação de inserir as crianças no processo de construção da cidadania, necessário para a construção da sociedade democrática, com participação de todos os cidadãos.



sábado, 4 de janeiro de 2020

O DIRETOR, O DELEGADO E O JUIZ









 









O DIRETOR, O DELEGADO E O JUIZ

                           Edmílson Martins
                           Janeiro de 2020


Eu tinha 14 anos de idade e o meu primo Heron (de saudosa memória) 15 anos, em 1952.

 Eu e ele estudávamos na Escola Técnica da Associação dos Empregados no Comércio de Crato, Ceará, à noite. Eu na quinta Série e ele no primeiro ano básico, hoje, sexta série do Ensino Fundamental.

Certa noite, estávamos eu, meu primo e um amigo, chamado Nílton, conversando na calçada da escola, quando chegou o Wílson, com quem o Nílton tinha alguma desavença.

Os dois começaram a brigar. Eu e meu primo tentávamos separar os dois para acabar com a briga. Mas enquanto segurávamos o Wílson, que era mais forte, o Nílton pegou uma pedra e tacou na cabeça dele, causando um pequeno ferimento. O sangue jorrou.

Dois funcionários da escola chegaram e nos seguraram. Levaram-nos para a sala do diretor, que também era diretor de um banco local. Homem sisudo, rigoroso, pavor dos alunos da escola. Era muito mais administrador do que educador.

Eu e meu primo tentamos dizer que era apenas uma briguinha de colegas e que nossa participação era uma tentativa separá-los. E que. Infelizmente, um feriu o outro com uma pedra. Coisa que não pudemos evitar.

O diretor não aceitou nossas explicações e, em vez de chamar nossos familiares por nós responsáveis, chamou o delegado. Era um capitão da polícia. Um homem corpulento, de feições duras, ameaçador. Seu aspecto duro não denotava compaixão. Metia medo na gente.
 
Como éramos menores, não nos podia prender. Colocou-nos num jipe e nos levou ao juiz local. Dirigiu-se a um hotel onde o juiz estaria em reunião. Lá esperamos até onze horas da noite, quando informaram que o juiz não estava naquela reunião.

Bem mal humorado, o delegado nos levou à residência do juiz. Já era quase meia noite, quando ele acordou o doutor, que atendeu vestido de pijama.
O delegado deu explicações. O juiz ouviu, circunspecto e incomodado. E falou assim ao delegado:
- O senhor, a essa hora da noite, me acorda para fazer queixa de quatro adolescentes, por causa de uma briguinha entre eles!

Nós quatro, nesse momento, já estávamos solidários e, no íntimo, batendo palmas para o juiz, contra o carrancudo delegado.

Então continuou o juiz:
- Senhor delegado, esses probleminhas têm que ser resolvido com os pais desses meninos, que a essa hora já deviam estar dormindo. Leve-os de volta para suas casas.

E dirigindo-se a nós, disse, de forma paternal e compreensiva:
- Vão para casa e não briguem mais, tá?

O delegado, com cara de tacho, colocou-nos no jipe e nos levou de volta à escola. E disse ao diretor:
- O juiz é muito bonzinho, mandou trazer os meninos de volta e levá-los para casa.

O diretor e secretária da escola, também com caras de tacho, não sabiam o que dizer. Já tinham chamado o meu primo mais velho, com quem morávamos, que nos levou para casa.

Ficaram pra lá o delegado truculento, o insensato diretor, mais administrador do que educador, e a lembrança do simpático juiz que ficou do nosso lado.
Quanto a mim, meu primo e os dois amigos, continuamos nossa vida. No dia seguinte já conversávamos amigavelmente. E comentávamos a truculência do diretor e do delegado e a benignidade do juiz que nos acolheu com simpatia.