ÁGUA
SANTA
Memórias
de um bairro Encantado
As Figuras do Bairro
Vale à pena sempre falar um pouco mais sobre
o Alyrio, que era conhecido pelo seu hiperbólico senso de humor, mas também por
sua visão radical sobre variadas questões da época. Dizíamos, como um mantra:
“Alyrio é muito radical”. Na época, não podia compreender que ele era
tão-somente um visionário informal, a seu modo. Sua visão caricatural das
coisas era apenas uma estratégia. Gostava de explicar a formação do bairro
assim, misturando o bizarro ao exagero:
- Isso aqui é uma pegada de dinossauro
perdida na história, e agora estamos morando aqui. Mas, nem existe no mapa.
Diante das notícias que chegavam do mundo, do
país, da cidade, Alyrio era capaz de tecer sua própria análise, curta e grossa,
aparentemente depreciativa e estrategicamente corrosiva. Hoje, distanciado do
objeto da investigação, entendo que se tratava de um realismo seu, muito
particular e peculiar.
Saíamos, naquela época, do regime militar, e
havia em parte da população certa corrente de otimismo. Mas, o seu espírito
anarquista – mais para o punk do que para Bakunin – não queria saber de
política, de militares, muito menos de eleições. Nada podia dar certo no Brasil
– eis a sua tese. E isso num momento em que se alentava alguma esperança na
sociedade brasileira, depois de vinte anos de regime de exceção. Tinha ideia de
criar uma banda punk com o nome sugestivo de América Latrina. Alyrio era amante do rock, teve época em que
flertava com o blues, mas terminou para além do heavy metal, cada vez mais
“pesado”. Não usava pulseiras de couro com pregos, roupas pretas, porque não
precisava – quem o conhecia enxergava isso estampado nele, feito uma aura
negra, de indignação e revolta, sem chegar a exalar maldade. Torcia o nariz
para o samba, lamentando profundamente o fato de que os negros que fizeram o
blues aportaram ao Norte e não ao Sul, no Brasil, para não dizer que nasceu no
país errado (e pra ele não chegava a ser um país...).
- Não dá certo. Isso aqui não vai dar nunca
certo...
Com o que se indignava e se revoltava o
amigo? Com a nossa condição de terceiro-mundo metido à besta, especialmente a
classe musical. Tecia comparações injustas, entre os guitarristas-mestres do
estrangeiro e os tupiniquins. Na sala de aula, a conversa de que éramos um país
“em desenvolvimento” não colava pra ele. Na época, não imaginávamos que surgiria
essa outra classificação de espírito eufêmico, que veio no bojo dos últimos
anos: país emergente.
Tenho a impressão de que meu amigo não
deixaria escapar a chance de dar seu parecer, se tal intitulação aparecesse por
lá, há quatro décadas. Se o conheço bem, trataria de comparar o Brasil com algo
que não cheira bem, flutua, boia, e não fica muito bem dizer aqui, em razão do
nível da linguagem.
Com alguma coisa feita sem que ninguém
perceba, no mar do desenvolvimentismo, e que emerja triunfante até à
superfície.
Pode este mundo iludir a todos, tempo
inteiro. Ninguém engana, porém, o Alyrio em tempo algum.
Maurício
Pássaro
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