quarta-feira, 27 de maio de 2020

PADIM PADE CIÇO























PADIM PADE CIÇO
             Edmílson Martins
             Maio de 2020

Durante a minha infância e adolescência no Sítio Ipueira, sertão do Ceará, onde nasci, ouvia muitas estórias sobre o padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro do Norte, conhecido popularmente por Padim Pade Ciço.

Eram diversas as estórias de milagres, conselhos e outras ações junto ao povo, principalmente, junto ao povo pobre. E muitos dos sertanejos da região onde eu morava, devotos do Padim, todo ano, participavam de romarias ao Juazeiro do Norte.

Para o sertanejo, o padre Cícero era o “santo do Juazeiro”, louvado em verso e prosa. Sobre ele surgiram muitos versos de cordel. E em poemas musicais foi cantado por Luiz Gonzaga: “Minha Santa beata Mocinha/Eu vim aqui, vim vê meu padrim/Meu padrim fez uma viagem, oi/Deixou Juazeiro sozim”.
Para os romeiros, o padre Cícero não teria morrido. Teria feito uma viagem e um dia voltaria. E essa crença era radical, ao ponto de o romeiro partir para a briga com quem dissesse o contrário.. O Padim estava vivo e não abria mão dessa convicção.

Quando fui morar em Crato, cidade vizinha de Juazeiro, fiquei mais próximo das estórias sobre o padre Cícero. Lá, as estórias eram muitas, contra e a favor do padre Cícero, colocado como uma figura polêmica, religiosa e politicamente.

Entre Crato e Juazeiro, havia uma rivalidade histórica, social, cultural e política, que se aprofundara a partir das ações religiosas, sociais e políticas do padre Cícero, junto ao povo do Juazeiro e dos romeiros de outros Estados do Nordeste.

Essa rivalidade radicalizou-se, quando em 1913/14, nas disputas entre as oligarquias dominantes do Estado do Ceará, o padre Cícero, já prefeito do Juazeiro, liderou, com amplo apoio popular, um movimento para derrubar o então governador do Ceará, Franco Rabelo. Houve confronto armado e Crato ficou ao lado do governador, que foi derrotado e afastado do governo. O padre Cícero tornou-se um dos políticos mais famosos do Nordeste, tornando-se vice-governador.

Em relação a esse fato, cantou Luiz Gonzaga: “Sou devoto/Sou romeiro/Devoto de meu Padrim/Felizmente o Juazeiro/Não lutará sozinho. O santo Padim Ciço/Mandou a gente rezar/E a maldade dos homens/Nos obrigou a matar”.

Na década de 1950, ainda era visível a rivalidade entre as duas cidades. Uma vez - eu presenciei - um padre de Crato publicou um artigo num jornal, dizendo que o padre Cícero teria sido um embusteiro, condenado pela Igreja e que não era santo coisa nenhuma.

Isso provocou uma forte reação do povo de Juazeiro contra o articulista. Houve manifestações, passeatas e comícios políticos, em desagravo ao padre Cícero. A população de Juazeiro quis mostrar o quanto era forte a sua devoção e respeito pelo seu patriarca.

Em Juazeiro, a rua e a praça principais têm o nome do padre Cícero. Quando eu ia a Juazeiro, andava por toda a rua, até à praça. Em todas as casas da rua, eu via um quadro com o retrato do padre. Isso evidenciava a familiaridade que os moradores tinham com ele.

A multidão dos devotos de Juazeiro é multiplicada muitas vezes pelas multidões de romeiros procedentes de todos os estados do Nordeste. São caravanas e mais caravanas que enchem a cidade, em determinadas épocas do ano.

O padre Cícero foi punido pela Igreja, que suspendeu suas atividades de sacerdote, ou seja, ficou proibido de celebrar missas, ouvir confissões e de ministrar outros sacramentos. Isso só fez crescer sua popularidade e admiração entre as multidões de romeiros.

Agora, o Vaticano pôs fim à punição, que já durava um século, após muitos apelos de devotos, autoridades eclesiásticas, intelectuais e políticas do Nordeste e de todo o país. A reconciliação abre caminho para a sua beatificação e até para canonização, como santo.  

Eis um trecho da carta que o Vaticano enviou ao bispo da Diocese de Crato, que trata do perdão às punições ao padre Cícero: "é inegável que o Padre Cícero Romão Batista, no arco de sua existência, viveu uma fé simples, em sintonia com o seu povo e, por isso mesmo, desde o início, foi compreendido e amado por este mesmo povo".

Por fim, quero esclarecer que este texto é mais uma contribuição, para as novas gerações, sobre a história de personagens brasileiros que participaram, com veemência, do processo de libertação do nosso povo. Essas figuras históricas, que lutaram junto ao povo, principalmente, junto ao povo mais necessitado, jamais poderão ser esquecidas. São sempre alimento e força para as lutas coletivas.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

LAMPIÃO, REI DO CANGAÇO





LAMPIÃO, REI DO CANGAÇO·
                              Edmílson Martins
                              Maio/2020
                                          
Eu tinha onze dias de idade, quando Lampião foi morto, junto com parte do seu bando, em 28 de julho de 1938, em Sergipe, pela polícia. Dizem que alguém ligado a ele o traiu, levando a polícia à grota onde os cangaceiros dormiam.

Durante minha infância e adolescência, ouvi muitas histórias sobre as aventuras de Lampião e seu bando no sertão nordestino. Era apontado como um personagem polêmico. Havia histórias contra e a favor acerca do chamado Rei do Cangaço, uma espécie de guerrilheiro do sertão.

Uns contavam que Lampião, por ter sofrido injustiças, junto com sua família, tornara-se rebelde e justiceiro. O pai teria sido assassinado por poderoso dono de terras. E diziam ser ele generoso para com os pobres e cruel para com os ricos, por uma espécie de vingança.

E havia alguns testemunhos. O meu avô contava que um dia ia pela estrada a cavalo, quando encontrou o bando de Lampião. Alguns cabras tentaram tomar o cavalo dele. Ele então se dirigiu ao Rei do Cangaço e pediu para não levarem o cavalo, porque era o único meio de transporte que tinha e que era pobre e precisava daquele animal. Então Lampião mandou que os cabras lhe devolvessem o cavalo.
                                                                                        
O meu pai também contava que um dia o bando chegou à nossa casa. Lampião, dirigindo-se a ele, disse que só queria comida para sua gente, descansar e um guia que indicasse os caminhos com destino a Pernambuco. Contou o meu pai que, depois do almoço, ele agradeceu e partiu com seus cabras, guiados por um homem, conhecedor das estradas do sertão.

Mas havia outros que contavam ser Lampião um bandido violento e perigoso, que praticava crueldades por onde passava. Havia até pessoas que diziam ter participado da Força policial que perseguia o bando.

Eu, como a criançada do meu tempo, ficava com a imagem do Lampião herói, injustiçado e justiceiro. E ficava entusiasmado com as histórias contadas sobre ele, principalmente aquelas histórias que narravam as suas ações exigentes em relação aos poderosos proprietários de terra. Falavam do dinheiro que exigia dos fazendeiros e que eles tinham que dar.

Eu tinha simpatia por ele, talvez, por viver num ambiente de injustiças sociais, problemas parecidos com os que tinha sofrido Lampião, conforme narravam. Eu vivia no campo,  com minha família, como ele viveu, e passava fome em meio a grandes plantações, como na música do Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”.

Diziam que os pais dele tinham sido perseguidos e mortos por poderoso latifundiário, por causa de terras que possuíam. Que ele e o irmão, não vendo saída, entraram para o cangaço, que já existia naquela época.

O meu pai enfrentara o mesmo problema. Tinha uma pequena propriedade no meio de um grande latifúndio. “Era a parte que lhe cabia naquele latifúndio”, como diz o poema de João Cabral de Melo Neto “Morte e vida Severina”.

Ele comprara essa gleba de terra a duras penas, mas o latifundiário estava sempre querendo tomá-la, como fazia com outros pequenos proprietários, que não reagiam.

Mas meu pai reagia. Para defender sua propriedade, ele reclamava, gritava contra a invasão. Mas o latifundiário não parava de invadir. Até que um dia, o meu pai tomou uma decisão: mandou dizer ao invasor que iria derrubar as cercas colocadas. O portador foi meu irmão Joaquim, que disse ao fazendeiro: - Não tente impedir, porque o meu pai está disposto a tudo. E o meu pai foi derrubar as cercas, armado de foice, machado e um fuzil. Só não houve confronto porque o fazendeiro lá não apareceu. Mas as cercas foram derrubadas.

Por pouco não aconteceu uma situação parecida com a da família de Lampião. Esses confrontos, por causa da ganância dos poderosos donos de terra, sempre aconteciam no sertão nordestino. E geralmente havia mortes.

As histórias narradas sobre a vida de Lampião e suas aventuras pelo sertão, por causa das injustiças que teria sofrido, juntamente com sua família, me fascinavam. Ele representava a rebeldia, o protesto contra as injustiças e desigualdades sociais reinantes no Nordeste.

Lampião entrou para a História como uma figura polêmica: amado por uns e odiado por outros. E hoje, existem, sobre ele, publicações para todos os gostos. Há várias interpretações e avaliações sobre as aventuras do rei do cangaço.

Apesar de algumas narrações negativas sobre Lampião, o que predominou na minha geração foi à imagem do herói, do homem corajoso, em busca de justiça, que enfrentava os poderosos e era generoso para com os pobres.

AS FOTOS




 

AS FOTOS  E AS LEMBRANÇAS

           Edmílson Martins
           Maio  de 2020            


Meu sobrinho João, sabendo da minha paixão pelo Sítio Ipueira, município de Barro, no sertão do Ceará, lugar onde nasci e do qual guardo ternas lembranças, enviou para mim, fotos daquele lugar.

Está lá a casa, onde morei, com meus pais e meus irmãos. Intacta,  reformada, mas com a estrutura original. Mantida como um Espaço Histórico de,  pelo menos, quatro gerações.

Está lá a casa, com alpendre, onde os meus pais reuniam toda a família e outras famílias locais, às noites, para conversar, ouvir contadores de estórias, ou violeiros e repentistas.

Está lá a casa, com a janela no alpendre, onde eu ficava, à luz de candeeiro,  lendo estórias em versos de cordel. Foi ali, recitando versos e lendo romances, que iniciei os conhecimentos da literatura popular. Naquele alpendre, com contadores de estórias, violeiros e repentistas, adquiri as riquezas da cultura popular.

Nas fotos, vi o açude, que fica próximo da casa. Açude onde eu tomava banho e aprendia a nadar, com meus irmãos e amigos de infância. Vi as árvores que circundam a casa, árvores verdes do tempo de chuvas.

Está lá, ao redor da casa, todo o cenário do meu tempo de infância e adolescência, com algumas modificações produzidas pela modernidade. O espaço amplo, muita gente junta conversando, fazendo refeições, bebendo. Todos demonstrando muita alegria. Tudo como era antes.

As fotos me trouxeram muitas recordações. Lembranças e saudades doces e suaves. Lembranças de um tempo passado, ainda presente. Um passado tão forte, tão marcante, que nunca sai da gente.


Ali, naquele recanto saudável, às vezes, cheio de matos secos, em época de secas prolongadas, às vezes, cheio de matos verdes, quando vinha a chuva, que enchia açudes e aguava as matas e plantações, vivi ricas experiências de vida. Apesar da pobreza material, havia uma riqueza espiritual, cultural e vivencial.

Há quem diga que tudo isso é saudosismo, ou  nostalgia. Mas eu sustento que é valorização de um tempo vivido com muito aprendizado. É História de vida e de vidas. Um tempo que não pode ser esquecido, porque está repleto de lições que ajudam a fortalecer o presente e o futuro das novas gerações.

É História. E a História tem que está sempre viva e presente. A História é um passado que nunca fica no passado. A História é a vida do povo, que deve sempre ser repassada às novas gerações.