MEDO DE ASSOMBRAÇÃO
Edmílson Martins de Oliveira
Julho/2024
Quando eu era menino, no sertão do Ceará, ouvia muitas histórias de assombração. Eram almas do outro mundo que apareciam, principalmente, à noite. As almas simplesmente apareciam. Não faziam mal a ninguém. Mas, por serem do outro mundo, a gente tinha medo. Era, na verdade, o medo do desconhecido, como até hoje acontece na vida real.
Os mais velhos diziam: a alma do fulano apareceu a beltrano, veio pedir alguma coisa. Havia a crença de que as almas apareciam porque precisavam de ajuda para se salvarem. Eram chamadas de almas penadas.
A partir daí, muitas histórias eram contadas e o imaginário popular, principalmente , o das crianças, ficava repleto de fantasias. Todas as histórias eram contadas como verdadeiras. As crianças acreditavam que realmente os fatos teriam acontecido.
Havia um senhor, chamado Vicente Severo, que era um hábil contador de histórias. Agradava a crianças e adultos. Era um artista. Dramatizava de tal forma as histórias, que pareciam verdadeiras e que ele tinha vivido tudo aquilo que contava.
Lembro-me ainda de uma das histórias que ele contava:
um viajante hospedou-se numa casa de fazenda abandonada. À meia noite, ouviu uma voz de mulher no sótão:
- Estou aqui.
O viajante respondeu com muita graça, na voz do contador:
- Ah, é? Eu também estou aqui.
E cada vez que a voz misteriosa falava, ele respondia com ironia, como se estivesse falando com alguém vivo.
Aí, a voz dizia:
- Vou deixar cair meu braço.
- O braço é seu, você faz dele o que quiser- respondia o viajante.
Foi caindo um braço, depois outro braço, depois uma perna, depois outra perna, até que caiu o restante do corpo e o viajante nem ligava, como se nada estivesse acontecendo. Até que de repente juntaram-se as partes do corpo e surgiu uma mulher muito bonita, pedindo ao viajante que arrancasse uma botija, um pote cheio de ouro, que ela tinha enterrado ali na sala.
Alguém precisava desenterrar a botija para que ela se salvasse. O viajante desenterrou a botija e ficou muito rico. E a mulher desapareceu, certamente, com a alma salva.
Enquanto seu Vicente contava a história, todos ficavam muito atentos e tensos, aguardando o final. As histórias, apesar de assustadoras, sempre tinham um final feliz, que criava uma certa distensão. Todos respiravam, aliviados, Mas tudo ficava guardado na memória das crianças. Embora sabendo que nada daquilo era verdade, que eram Histórias de Trancoso, nos momentos de escuridão, lembrando das histórias, ficavam com medo.
Aqui, no Rio de Janeiro, há pouco tempo, marquei uma consulta com um médico homeopata. Como era a primeira consulta, tive que responder a um questionário. Ele me fez várias perguntas. Eu fui respondendo. Contei que eu fora preso pela ditadura, em 1972, com ameaças de torturas e sumiço. Ele me perguntou se tive medo. Eu disse que não. Ele então me perguntou se tive ou tenho medo de alguma coisa. Eu respondi que tenho medo de assombração. Ele riu, com ironia e surpresa. E falou, admirado: quer dizer que... você não teve medo de torturas e de sumiço, mas tem medo de assombração... Eu respondi que sim. Ele riu muito.
Pois é, hoje, com 86 anos, ainda tenho medo de assombração, que não faz mal a ninguém, mas não tenho medo de encarar e combater a violência das guerras, a violência social imposta por um monstro real, chamado capitalismo, que não aparece à noite, como as almas do outro mundo, mas em plena luz do dia, produzindo muito mal para a humanidade, diferente das almas, que só querem ser salvas,
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