segunda-feira, 4 de novembro de 2019

MANDA DEUS CHUVA PRA EU COMER ARROZ




“MANDA DEUS CHUVA PRA EU COMER ARROZ”
                                         Edmílson Martins
                                          Outubro de 2019

Corria a década de 1940. Eu tinha, mais ou menos, oito anos. Longas secas no Nordeste. Foi naquele momento, 1947, que surgiu o lamento e apelo de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, com a música “ASA BRANCA”: Quando oiei a terra ardendo/Qual fogueira de São João/Eu perguntei a Deus do céu, ai/Por que tamanha judiação/Eu perguntei a Deus do céu, ai/Por que tamanha judiação”.
Pois bem, naquele momento, eu e outras crianças, andando pelas capoeiras, ou a trabalho, ou caçando passarinhos, diferente do lamento da música e da fuga da Asa Branca, pedíamos, insistentemente, a Deus que mandasse chuva. Então, entoávamos, repetidamente, a expressão “manda Deus chuva pra eu comer arroz; manda Deus chuva pra eu comer arroz”.
Nosso apelo fazia sentido. É que quase não comíamos arroz. Meu pai plantava milho, feijão, mandioca, cana de açúcar e arroz. Quando chovia, cultivavam-se milho, feijão, mandioca e pouco arroz. Porque, para o arroz, havia poucos lugares apropriados para o plantio. Mesmo assim, como o arroz era mais valorizado, o pouco que se colhia era vendido para pagar os empréstimos que meu pai adquiria no Banco do Brasil. O dinheiro era empregado no plantio e o banco não considerava a falta de chuva. O empréstimo tinha que ser pago no vencimento.
Somente sobrava para nós feijão, milho e mandioca (transformada em farinha). Mas parte desses produtos também era vendida, principalmente a melhor parte. Sobrava a segunda qualidade. “O feijão, chamado feijão de corda” era cozido, mas ficava duro. Comíamos assim mesmo, com farinha. Como era cozido com muita água, comíamos muito o caldo com a farinha.
Às vezes, com muita raridade, comíamos arroz, geralmente na Semana Santa. Arroz com queijo. Momentos ansiosamente esperados. O mais, era angu com rapadura, ou com leite, quando tinha. A rapadura era de segunda qualidade; a de primeira era vendida para pagar ao banco.
Por tudo isso, saía a criançada, gritando, fazendo apelo a Deus, a nós apresentado como o Pai misericordioso, que tudo pode. “Manda Deus chuva pra eu comer arroz”.
E eu, sendo a criança de mais idade, recomendava: “vamos gritar mais alto, bem alto, pra Deus nos ouvir”. Deus, pela convicção que tínhamos e pela teimosia da nossa esperança, certamente nos ouvia e até nos atendia. Mas vinha o banqueiro, que tinha (e tem) como deus o dinheiro, e levava quase tudo o que nosso Deus nos dava.
Hoje, longe daqueles tempos, já adultos, mas ainda vivendo em triste situação social, sem as condições necessárias para viver em paz, mas combatendo o bom combate e guardando a fé, repetimos o apelo simbólico daquelas crianças ao Deus da esperança. “Manda Deus chuva pra eu comer arroz”.

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