quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O VELHO (texto de Eliane Oliveira)


O VELHO - 18/07/18 - Texto de Eliane Oliveira

Para meu pai Edmilson Oliveira

Um dia, ele colocou pra tocar o disco do Chico Buarque na vitrola. A música se chamava “O velho”. Eu tinha uns 10 anos. Pediu-me que lesse a letra no encarte do LP. Fiquei quietinha, sentada em minha cama, ouvindo a música e acompanhando a letra no papel. Era uma melodia bonita, mas triste. O poeta estava contando uma história que eu ainda não podia entender. Meu pai tinha mais ou menos a idade que tenho hoje: quarenta e poucos anos, fase em que, segundo, C. G. Jung acontece fortemente uma ‘Metanóia’ (despertar). Pois, sendo tempo em que estamos mais conscientes da nossa finitude e da finitude de todas as coisas, podemos avaliar o que fomos na primeira metade da vida, e afirmamos e/ou reformulamos honestamente o que queremos ser na próxima metade. E uma coisa que começamos a querer é deixar legados. Nossos legados. Nossas memórias. Nossas vivências. Respostas autorais que demos para os dilemas que encontramos e escolhas que fizemos. Ensinamentos. Filhos podem ser uma boa maneira de guardar nossos legados. Contar-lhes histórias para lhes contar nossas histórias. De vida.

Naquele dia, meu pai tomou a música para me ensinar. Havia dois personagens nela: um velho e um jovem. O jovem questionava o velho sobre como fora sua vida. Talvez o jovem fosse seu filho. Talvez fosse seu neto. Talvez fosse sua própria consciência posta na sombra de si mesmo, a vida toda, que agora ressurgia, lembrando-o da vida e chamando-o para viver, mesmo e ainda no seu final.

O JOVEM:
“Então, eu pergunto a ele [AO VELHO] pelo amor”.
Ele [O VELHO] me diz:
- "que a vida inteira, se guardou do carnaval, da brincadeira, que ele não brincou".
- "que sempre se escondeu, não se comprometeu, nem nunca se entregou".
- "Ele me é franco, mostra um verso manco de um caderno em branco que já fechou”.
O JOVEM, que parece desorientado sem os conselhos do velho, ainda com esperança, insiste:
“Me diga agora, o que é que eu digo ao povo? O que é que [O SENHOR] tem de novo pra deixar?
O VELHO:
- “Nada, só a caminhada longa, pra nenhum lugar”.
- “Nada, e eu vejo a triste estrada onde um dia eu vou parar”.
- “Não, foi tudo escrito em vão, e eu lhe peço perdão, mas não vou lastimar“.

Essa música comovia meu pai e o sacudia nele mesmo. Queria me ensinar o que ele mesmo aprendera para que eu, aprendendo, vivesse e, quem sabe, ensinasse (é assim que fazem os mestres). “Minha filha, que você viva o amor pelo mundo, pela vida, pelas pessoas tão plenamente que, ao final de sua vida, tenha muitas coisas pra deixar”. Ele estava se dizendo a si mesmo: “Que eu viva uma vida que leve o amor às últimas consequências”.

Nasceu em 1938. Cresceu no sertão do Ceará. Teve 18 irmãos. Dois mortos quando crianças (de inanição). Trabalhava na roça. Alfabetizado em casa pelo irmão mais velho (José). Foi pra escola aos 12 anos. Em Crato (CE), foi comerciário e bancário. Aos 18 anos, veio para o Rio de Janeiro tentar melhorar a vida. Estudou. Foi autodidata. Passou no concurso para o Banco do Brasil. Passou no concurso para professor de português do Estado. Participou do movimento de Jovens da Igreja Católica (JEC, origem da teologia da libertação). Em nome do que aprendera sobre o Evangelho de Jesus Cristo, quis contribuir na construção de uma sociedade mais justa para todos sem quaisquer distinções, em que a vida fosse abundante materialmente e espiritualmente. Envolveu-se com militância política sindical. Conheceu minha mãe, Maria José, no grupo de igreja. Casaram-se. Tiveram dois filhos, Maurício e Rinaldo. Elegeu-se presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro(1972). Foi perseguido e preso pelo golpe militar. Ficou desaparecido por 15 dias. Ninguém sabia se ainda estava vivo. Ficou 46 dias na prisão. “Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”. Minha mãe foi ao encontro do Bispo, que acionou o professor Cândido Mendes, os advogados Nilo Batista e Tércio Lins e Silva, que advogaram na defesa de meu pai. Foi solto. Nascemos eu e Rosane.

Apoiado pela minha mãe e em sua parceria, candidatou-se duas vezes a Deputado Estadual. Não foi eleito em nenhuma das vezes. Atuou na Associação de Moradores da Piedade. Inúmeras reuniões políticas em casa. Inúmeras reuniões de Igreja, na Igreja e em casa. Esquerda. Crítico e autocrítico, inclusive da esquerda. Livre pensador. Campanhas políticas, apoiando ativamente candidatos de esquerda. Panfletagem na feira livre sábado de manhã. Panfletagem na estação de trem de segunda a sexta de manhã. Reuniões em casa com os candidatos e políticos, embaixo de uma mangueira de copas largas no quintal. Cadeiras em círculo. Debates. Palestras. Círculo bíblico. Missão Popular. Campanha da Fraternidade. Programa de rádio. Os filhos, com eles, pai e mãe. Ao longo de décadas, sem desistir de seu compromisso pela vida. Com esperança no mundo e no humano. Descobriu-se poeta. Escreve cordéis. Vem escrevendo suas memórias. São muitas.

Há bem pouco tempo, meus pais foram assaltados dentro de casa. A mão armada. Água Santa. Bairro dantes bucólico, crianças brincando na rua, cadeiras na calçada, bicicleta, futebol, pipa. Dia ou noite. Hoje, está sob a guarda do tráfico e da milícia. Ruas desertas. Medo. Casas trancadas. Às seis horas da manhã, véspera do Natal, minha mãe abre o portão apenas para colocar o lixo na caçamba, na calçada. Quatro meninos, entre quinze e vinte anos, a rendem. Agora vejam: mesmo diante do perigo iminente e, obviamente, com medo de morrerem a bala com o revólver na barriga, quiseram ensiná-los, como velhos que têm conselho (diferentes do VELHO do Chico). Minha mãe: “Meu filho, sua mãe sabe que você está fazendo isso? Não faça isso não. Você estuda? Você é tão jovem... Tem tanta vida pela frente”. Meu pai: “Você já pensou o que vai contar pro seu filho quando ele crescer?”. Meu pai contou pra eles que havia sido professor da Escola [Estadual] Virgílio, que fica na outra esquina. Que talvez tenha dado aulas pros pais e tios deles. O mais novo dos meninos foi até a geladeira e pegou água pra dar a minha mãe e disse: “Fica calma, tia. Não vai passar mal não! Não vai acontecer nada”. O mais velho perguntou: “Cadê o ouro, tio? Passa o ouro”. Meu pai: “Que ouro, filho? Não temos ouro. Não temos dinheiro. Tudo o que temos está aqui. O ouro que temos é a nossa vida. Se você atirar em nós, eu sei que vamos pro céu. Eu tenho consciência de que cumprimos bem nossa missão até aqui, neste mundo. E você, sabe?”

Os meninos deixaram meus pais na cozinha. Foram conversar na sala para decidir o que fariam. Após uns minutos, voltaram e disseram-lhes: “Nós vamos embora. Fiquem aqui dentro. Só saiam após uns vinte minutos. Desculpem". Bateram o portão e sumiram.
Meu pai e minha mãe só me contaram do acontecido após o Natal. Eu, assustada com o fato e com a reação deles, dei-lhes uma bronca (olha que petulante!): “Caramba, vocês não podiam ter feito isso. Arriscaram muito. Podiam ter atirado”. Ao que eles me disseram: “Não, minha filha, ao contrário. Estaríamos em risco de vida (da vida que defendemos e acreditamos) se não tivéssemos tentado conversar com eles. Eles não sabem o que estão fazendo. Meninos. São vítimas da violência, do Estado violento que os exclui e depois os mata, através da criminalidade e da pobreza. Não podíamos desistir deles e vê-los somente como bandidos. Se desistíssemos, estaríamos desistindo de nós mesmos e de tudo o que acreditamos até hoje”. São meus pais. Mas, se não fossem, também admiraria muito essas pessoas.

Pai, hoje, cada vez um pouco mais, entendo a música do Chico e o que você já quis me dizer com meus apenas dez anos. Deve ser por isso que virei uma contadora de histórias. Inspirada em vidas como a sua, quero viver minha vida tão comprometida e entregue à vida que possa ter boas histórias pra contar sobre a vida. E, ao final de tudo, também sentir que cumpri bem meu caminho. E, quem sabe, inspirar outros que vierem a contar suas histórias, artesanatos da vida.
No dia 17/07/18, meu pai, Edmílson, completou 80 anos. Dias atrás, ele e minha mãe foram vistos na praça Rio Grande do Norte, no Engenho de Dentro, no samba, com grupo ao vivo, promovido pelo Hospital Pedro II. O evento era um ato em defesa da luta antimanicomial. Diante da surpresa das pessoas que viram seu vídeo, com eles alegremente dançando, disseram-me: “Por que as pessoas riem de nós e nos acham ‘fofos’ ao nos verem sambando? Eu, heim?! Não somos velhos!". Não são mesmo.
O samba que sambavam era o do Martinho da Vila, e eles atualizavam o mantra de suas vidas: “Canta, canta minha gente, deixa a tristeza pra lá, canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar”.
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O VELHO - Música de Chico Buarque de Holanda, 1968.
(Ouça a música em anexo)
O velho sem conselhos
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar
O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívida, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
E diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
E eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar
O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Não
Foi tudo escrito em vão
E eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar
youtube.com
Chico Buarque - Vol. 3 (1968) - 07 - O Velho

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