Encaminhamos esse texto sobre uma das nossas experiências na época da
ditadura. É uma lembrança histórica e um alerta para as novas gerações.
Rogamos a Deus que momentos como aquele, jamais aconteçam em nosso
país. É melhor a democracia com todos os seus problemas do que a
ditadura, que golpeia as liberdades com suas perversões.
Abraços
Edmílson e Maria José
PRAÇA QUINZE E ANOS DE CHUMBO
(por Edmílson Martins)
Estávamos presos em cubículos da Polícia Federal na Praça Quinze de
Novembro. Eu e os saudosos Roberto Martins, Antônio Imbiriba da Rocha e
Victoriano José Xerez. Fomos encarcerados pela ditadura militar,
instrumento do império econômico reinante na América Latina e em várias
partes do mundo. Roberto e Imbiriba eram marxistas e eu, cristão. Juntos
defendíamos os mesmos ideais de liberdade e de defesa da dignidade
humana.
Fomos punidos por sermos dirigentes sindicais e
defensores das liberdades democráticas. Logo ali na Praça Quinze de
Novembro, que tem esse nome em homenagem à proclamação da República,
que, em 1889, livrou o Brasil do regime imperial, que infelizmente mudou
apenas de corpo. A alma, na República, continuou a mesma: Autoritária e
repressora.
Transcorria o mês de abril de 1972. O outono estava
começando, o tempo frio estava chegando, aquecido pelo calor da
mobilização sindical que promovíamos, quando, no dia 17, a ditadura e os
banqueiros, mandaram a Polícia Federal invadir o Sindicato dos
Bancários e nos prender.
Ficamos privados da liberdade, por
ironia, quatro dias antes da comemoração do dia de Tiradentes: “Libertas
quae será tamen”. Encarcerados bem próximo do Palácio Tiradentes, onde o
líder da Inconfidência Mineira esteve preso por três anos, antes de ser
enforcado. “Quem não presta fica vivo, quem é bom, mandam matar”, disse
Cecília Meireles.
Foram 46 dias de privações. Mas os opressores
podem tirar a liberdade física, nunca a liberdade interior. Tínhamos
consciência do nosso papel na História. Por isso não nos curvamos, nem
nos deixamos abater. O Roberto falava: “Eles querem nos quebrar por
dentro. Não vamos permitir”.
Convivemos com outros presos
políticos, com traficantes e viciados em droga e até contrabandistas. A
maioria dos que lá estavam era composta por jovens. Alguns viciados,
alguns assaltantes de bancos e estudantes idealistas, presos por
participarem do movimento estudantil.
Todos ali éramos vítimas
do perverso sistema econômico e militar vigente. Jesus Cristo já
condenava os líderes, que sustentavam um sistema formalista e hipócrita,
que exerce o controle ideológico sobre o povo, impedindo-o de ver as
possibilidades de transformação, levando-o à perversão. “Ai de vocês,
doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino do Céu para
os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam”.
Entendíamos que devíamos dialogar com todos os companheiros de sela,
fossem quem fossem. Até aprofundávamos alguns assuntos sobre o viver
humano. O Imbiriba, com muito jeito e paciência, ensinava o jogo de
xadrez a alguns daqueles jovens. Junto com eles, eu, que não sabia
xadrez, acabei aprendendo.
Líamos muito, de forma que até
despertávamos interesse nas pessoas. Em poucos dias, a sela tornou-se um
ambiente de leitura. Todos liam romances, crônicas, contos, a Bíblia,
etc.
Não era qualquer livro que podia entrar na prisão. Todos
passavam por rigorosa censura dos policiais. Autores tipo Jorge Amado,
Graciliano Ramos, D.Helder Câmara, Alceu de Amoroso Lima não entravam.
Eram considerados comunistas e subversivos. Mas deixavam entrar a
Bíblia, talvez, o livro mais subversivo da História, levada pela Maria
José, minha esposa.
Há texto mais subversivo do que este
proferido por Jesus, conforme o Evangelho de Lucas?: “O Espírito do
Senhor me enviou para anunciar a Boa Nova aos pobres; para proclamar a
libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar
os oprimidos.” Ou este texto, conforme o Evangelho de Mateus?: “Felizes
os aflitos porque serão consolados. Felizes os pobres porque deles é o
Reino do Céu. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão
saciados. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o Reino do Céu. Felizes os que promovem a paz, porque serão
chamados filhos de Deus”.
Não há livro mais subversivo do que o
“Êxodo”, um dos cinco primeiros livros da Bíblia, que narra a libertação
do povo hebreu da escravidão do Egito e a trajetória pelo deserto rumo à
Terra Prometida. Se fazer
subversão é lutar contra sistemas arrogantes e estabelecidos, Moisés, Aarão, Josué, Javé (Deus) foram grandes subversivos.
Através da leitura da Bíblia, conversávamos sobre a questão da
liberdade, da justiça e da vida. Todos ficavam encantados com as
leituras e reflexões. E não era pra menos, pois quem está preso só
pensa em alcançar a liberdade. Esses textos e troca de ideias apontavam
para a esperança.
Quando saímos da prisão, os que ficaram
demonstravam alegria pela nossa libertação e, ao mesmo tempo , tristeza
pela nossa saída. Alguns pediram para deixarmos a Bíblia e outros
livros.
Aquela experiência de 46 dias no cárcere, convivendo com
variados tipos de pessoas e variados modos de ver e viver a vida, nos
trouxe muitas lições, aprendizagem e conclusões.
Todos éramos
vítimas de um sistema social perverso, que cria todas as condições para
que as pessoas pratiquem ações criminosas para depois prendê-las
condená-las e matá-las, reprimindo também, com prisões, condenações e
mortes, aqueles que lutam contra essas condições perversas.
Nós
éramos presos políticos, por combatermos o sistema que ainda hoje leva à
criminalidade muitas pessoas como aquelas que conosco estavam presas
por causa de ações criminosas.
Aprendemos que em qualquer
ambiente e circunstância podemos ser livres e contribuir para tornar as
pessoas e a sociedade melhores; que as vítimas da perseguição e de toda
injustiça, sempre percebem sinais de esperança em meio às tribulações.
Para nós, o que valia ali, naquele ambiente de situações adversas era
manter o ânimo e vencer o cansaço, traduzindo o sonho por um mundo
melhor em gestos concretos de transformação dos corações e da realidade.
Tudo isso, sem medo. “Não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas
não podem matar a alma”, disse Jesus Cristo.