PERDA DA MEMÓRIA E DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Edmílson Martins de Oliveira
Outubro/2025
No Livro dos Juízes, que relata os fatos ocorridos entre 1.200 e 1.020, após a morte de Josué, e descreve a continuação da conquista da Terra Prometida, o autor tenta mostrar que só é possível desenvolver um projeto social justo se for mantida a memória e a consciência histórica, adquiridas através da resistência e da luta.
Quando essa memória é quebrada, o projeto é ameaçado e corre o risco de voltar atrás. O resultado é um conflito entre a fidelidade a esse projeto justo e o culto aos ídolos que corrompem a sociedade, levando-a ao desastre.
Com a alienação da consciência histórica, há um abandono do projeto que produz liberdade e vida e adesão aos ídolos que corrompem, produzindo sistemas sociais injustos, que produzem escravidão e morte.
Servindo aos ídolos da escravidão e da morte, o povo perde a liberdade e a vida que tinham sido duramente conquistadas. Mas no limite do sofrimento, o povo volta à consciência histórica e clama a Deus, que responde ao clamor, fazendo surgir líderes que organizam o povo e o ajudam a reconquistar os valores perdidos.
Por fim, mostra o autor que o desafio é extinguir completamente a idolatria, que produz valores que conduzem à escravidão e à morte, sufocando valores que conduzem à liberdade e à vida. É uma luta difícil porque é um enfretamento contra detentores do poder, mas necessária e possível, quando se está ao lado da verdade.
Mais tarde, na história do povo israelita, surgiram os profetas que questionavam a situação social de sua época e vislumbravam um futuro diferente para o seu povo. Tentam preservar a tradição autêntica do povo, deformada em meio a culturas criadas para defender interesses, legitimar poderes e sustentar sistemas injustos.
Os profetas exigiam a conversão do povo para mudar o sistema social e anunciavam a esperança para encorajar e estimular na retomada da caminhada da reconstrução e recuperação dos valores históricos. Era preciso não perder a identidade cultural.
Aliás, a vinda de Jesus, conforme os Evangelhos, tem o sentido de restauração. Jesus veio para restaurar os valores perdidos através dos tempos. Veio pregando a reconciliação com o Criador. A humanidade estava em crise porque Dele tinha se afastado.
Para ser feliz e ter a vida em plenitude, o ser humano teria que voltar às origens, renascer, tornar-se criança. E isso só seria possível através da conversão, ou seja, da luta pela libertação. Seria imperioso retomar a aliança com o Criador, quebrada pela perda da memória e da consciência histórica.
A leitura atenta dos livros do Antigo e do Novo Testamento nos leva a uma profunda reflexão sobre a nossa consciência histórica, sobre os valores da nossa tradição e sobre a necessidade da busca e preservação de nossa memória. Consciência histórica e memória perdidas por causa de alianças com ídolos que produzem a escravidão e a morte.
Hoje, acontece o mesmo processo de degeneração cultural e social ocorrido no tempo dos juízes e dos profetas. Há uma perda da memória e da consciência histórica. Os fatos e personagens da nossa História, que contribuíram para a construção da nossa identidade como povo livre, são esquecidos por nossas novas gerações.
Há uma alienação da consciência histórica, com o abandono do projeto de construção da sociedade livre, defendido por nossos antepassados e adesão ao projeto dos ídolos do nosso tempo: dinheiro, lucro, consumismo e prazeres efêmeros, que destroem a dignidade humana.
Hoje, como no tempo dos juízes e dos profetas, o povo é tentado a aderir a esses falsos valores, oferecidos como iscas pelos que detêm o poder econômico, sedentos de poder e de glória. Nosso país está dominado por amplo esquema de corrupção promovido pelos podres poderes. O povo está confuso, desorientado, fragilizado e sem rumo definido, “falando de lado e olhando pro chão”. O crime organizado tomou conta do país, os poderes da República estão enfraquecidos.
E o que vemos, como consequência dessa perda da memória com alienação da consciência histórica, é a supressão dos nossos valores culturais, o desrespeito às nossas tradições e à nossa dignidade de seres humanos. O nosso país está mergulhado nesse clima de intensa intranquilidade, com violência generalizada em todos os recantos.
Diante de tenebrosas transações, com assombroso crescimento da corrupção nas instituições políticas e sociais, em todos os escalões, promovidos pelos ídolos da escravidão e da morte, com graves danos para a sociedade, está na hora da volta à consciência histórica e da recuperação de nossa memória.
É preciso retomar a luta de Zumbi dos Palmares, dos inconfidentes de Minas Gerais, de Frei Caneca e seus companheiros da Confederação do Equador, do Beato de Canudos Antônio Conselheiro, do Padre Cícero do Juazeiro do Norte, dos que resistiram à ditadura militar de 1964, etc.
É imprescindível reassumir o projeto de sociedade livre, democrática e justa. E para isso, é preciso mudar completamente o sistema político e social atual, que é fundamentado na idolatria do consumo do dinheiro e do lucro. Mas isso só será possível se o povo recuperar sua memória e consciência histórica perdidas, retomando a luta dos antepassados.
Como nos livros dos juízes e dos profetas, precisamos resgatar os valores da nossa História, detectando as causas das limitações e sofrimentos que estamos experimentando. Temos que identificar e destruir os ídolos aos quais nossa sociedade está servindo. Parafraseando o Apocalipse de João, é preciso destruir a sanha dos que destroem a nossa sociedade, isto é, dos ídolos, donos do capital, que impedem a caminhada do povo rumo à liberdade.
E para terminar, transcrevo versos da canção do padre Zezinho, “O povo de Deus”, que se refere à caminhada do povo do Antigo Testamento, que, com seus erros e acertos, não desistia da busca da Terra Prometida:
“O povo de Deus também vacilava/Às vezes custava a crer no amor/O povo de Deus, chorando, rezava/Pedia perdão e recomeçava”.